Capítulo 43

Sábado de manhã o serviço da casa já tava meio adiantado por causa da minha mãe, mas ainda assim eu ia ter que ralar. Então acordei cedo, amarrei o cabelo de qualquer jeito e fui varrer o quintal antes da Mariana levantar da cama. O chão tava cheio de folha seca, varri tudo devagar, tentando não fazer barulho. Juntei num monte, coloquei num saco e carreguei até o beco da casa, deixando lá encostado pra esperar a terça-feira, quando o lixeiro passasse.

Quando terminei, o corpo já tava suado e a barriga roncando. Entrei pra dentro e fui direto pra cozinha. A mesa tava posta, todo mundo já sentado, só esperando meu padrasto que tinha acabado de chegar da padaria com pão quente. O cheiro enchia a casa inteira, aquele perfume de massa recém-assada que dá um abraço na gente. Eu respirei fundo, sentindo o estômago se contrair.

Eu tava faminta.

— Julinha, vai querer um ovinho com a gema mole, filha? — perguntou minha mãe, mexendo nas panelas do fogão.

— Quero, mãe… um só.

— Tia, faz dois, que a Julinha precisa de muita proteína! — se meteu Mariana, toda abusada.

Minha mãe virou pra gente com aquele olhar de sentinela que ela tinha. Sério, parecia radar. Eu me impressionava como ela farejava qualquer detalhe estranho, como se tentasse captar coisas no ar.

— Não, mãe, faz um só mesmo. E você cala a boca, tá? — rebati, dando um chute leve na Mariana por baixo da mesa.

Meu padrasto agia com normalidade, tranquilo, como se nada tivesse acontecido entre a gente. Como se a gente nunca tivesse trocado aquelas fotos indecentes. A merda é que agora eu reparava nele de um jeito diferente… era difícil não deixar o olho escapar pro volume na bermuda, coisa que antes nunca tinha me chamado atenção.

— Mãe, tem como a senhora me dar um dinheiro pra eu sair esse final de semana com o moço? — arrisquei, tentando soar inocente.

— Filha, só quando virar o mês… tô dura. Coloca no cartão.

— Ihhhhh! BERIMBOLO LAVA A JATO VAI FICAR FAMOSO!!! — gritou Mariana, lembrando da piada do motel.

Meu padrasto caiu na risada sem entender nada. Pra ele e pra minha mãe devia soar só como mais uma gracinha de adolescente que não valia a pena perguntar. Mas ele ainda completou:

— Júlia, tu podia me ajudar lá em casa com umas coisas e eu te dou um dinheiro. Pago uma faxina pra você.

Minha mãe olhou satisfeita, quase orgulhosa da ideia. Eu já tinha ido lá algumas vezes ajudar ela, a casa dele era pequena, arrumadinha, só precisava arrastar móvel e fazer aquele tipo de faxina que só mulher sabe fazer. Homem é porco e preguiçoso, ele só era um pouco menos porco e menos preguiçoso.

— Pode ser na segunda? — perguntei.

— Pode. Eu vou estar trabalhando e tu faz com calma.

— Mas eu queria o dinheiro pro domingo agora!

— Nem trabalhou e já quer receber, Julinha? — minha mãe zombou, rindo de mim.

Meu padrasto também riu, balançando a cabeça:

— Claro que eu te dou, garota. Nem é pelo trabalho… eu sei que você faria de graça se eu pedisse.

— Hahaha! Mas não faria mesmo! — emendou Mariana, toda debochada. — Tio, o senhor tá muito enganado.

— Toma aqui o dinheiro. — Ele tirou duas notas grandes e colocou em cima da mesa, como quem fecha negócio. — Vou pagar adiantado, pra tu colocar na tua agenda e não deixar de ir.

Sem pensar duas vezes, eu arrastei o dinheiro pra mim e enfiei dentro do sutiã, rindo sozinha, feliz da vida. Era muito mais do que eu imaginava pedir. Eu, na minha idiotice, nem pensei nas consequências daquilo na hora. Só pensei no peso gostoso das notas contra a pele, como se fosse prêmio.

A gente ficou um tempão conversando na mesa. O papo acabou virando sobre o moço ser um duro: tudo que tinha ele torrava no carro, e ainda por cima nem seguro tinha. Minha mãe aproveitou a deixa pra me dar sermão, claro: disse que eu não era pra gastar meu dinheiro com o carro dele e que a obrigação de colocar gasolina era dele.

— Conheço esse tipo de moleque… daqui a pouco o meu cartão tá cheio de peça de carro.

— Mãe, quando foi que eu coloquei alguma coisa no seu cartão que não foi pra mim? — retruquei na hora.

Ela soltou uma resposta atravessada que eu nem entendi direito de onde tinha vindo. Fiquei meio boiando, só olhando.

— Eu só quero dinheiro porque a gente vai sair e eu não quero ficar dura, pedindo coisa pra homem.

— Isso mesmo, Julinha — meu padrasto se meteu, me apoiando. — Mulher tem que ser independente.

— Olha o feministo! — Mariana apontou pra ele, caindo na gargalhada e tirando sarro.

O café virou faxina na cozinha e eu botei a faladeira da Mariana pra trabalhar. Só quando pegou a vassoura é que ela lembrou de avisar que tava com cólicas. Eu revirei os olhos, mas não dei mole: cozinha, depois sala, e os dois banheiros da casa.

Quando parecia que tava tudo pronto, subi correndo pro quarto pra arrumar minha mochila. Coloquei uns livros e cadernos só de fachada. Minha mãe achava que eu ia pra aula particular, mas na verdade eu ia era me depilar. Claro que ia embolsar o dinheiro da aula, não sou besta.

Revirei meu armário caçando uma calcinha decente. Eu tava peluda, então não podia ser nada muito cavado. Só que minhas calcinhas estavam todas velhas. Desgraça ser pobre, pensei, segurando um pano todo laceado que mais parecia trapo.

Mariana apareceu na porta, me olhando.

— Prima, vem cá… esse rolê do motel… se ele insistir em me levar, o que tu vai fazer?

— Mariana, eu sei que tu não vai querer ir de verdade… mas eu não quero nem pensar dele falar isso. Eu vou começar a ficar com ciúmes.

— É que a gente meio que colocou isso na cabeça dele também, né?

— Pois é… nós duas só fazemos merda, puta que pariu.

— Julinha, melhor deixar isso morrer e cuidar pra não acontecer de novo. Essa coisa de pegar namorado uma da outra não vai dar certo. Se bem que… o teu é gostoso, viu? Eu super pegaria. Valeria a pena não falar mais contigo.

— Ah é, sua piranha!? — falei fingindo brabeza.

Ela riu, veio correndo e me abraçou, me enchendo de beijo no rosto.

— Brincadeira, prima. Eu te amo!

Ela congelou quando me viu ficar muda, lembrando de repente de uma coisa.

— Eita… eu nem confirmei com a Diana que eu ia. Será que ela acha que eu não vou mais?

— Mas tu falou que tinha que confirmar alguma coisa? — Mariana perguntou, franzindo a testa.

— Não… mas não precisa?

— Se tu não falou nada de confirmar, não precisa, ué! E ainda tá arriscado de tu confirmar e ela querer desmarcar. — Mariana soltou a frase com aquela cara de canalha, e a minha, logo depois, foi pior ainda.

— É mesmo, né? Nossa, Mariana… eu tô com um tesão nela que tu não imagina. Ela é tudo que eu quero ser um dia.

— Me leva lá um dia…

— Caralho! Tu já quer me sufocar com essa aí também? Se toca, porra!

Mariana correu pra fechar a porta do quarto. E quando ela fez isso, veio a bomba:

— Porra, eu fico num tesão fudido quando eu tô de xico, cara…

— E eu com isso? — rebati. — Não vou meter a boca em tu sangrando nem fudendo… chuveirinho, filha, chuveirinho.

Os dez minutos seguintes foram dela tentando me encurralar no quarto. Quando Mariana queria, ela vinha com força, na base da luta, quase me dobrando na marra. Mas eu não tava afim. Minha cabeça tava na Diana, e eu queria guardar pra ela.

Foi no meio dessa tentativa de dominação que o celular vibrou e me salvou… ou não.

Era mensagem do meu padrasto:

“Filha, na segunda me diz se você precisa que eu esteja em casa para a faxina, eu tento chegar mais tarde ou sair mais cedo do trabalho.”

Eu li e meu corpo inteiro gelou. Fiquei nervosa, tonta. O silêncio pesou no quarto, até Mariana soltar:

— Prima, ele armou isso pra te comer. E agora?

E agora? Agora fudeu.