Capítulo 58

Fiquei duas semanas trancada em casa esperando a merdalhada baixar. Se eu soubesse que ia ficar presa assim dentro de casa, não tinha feito nada daquilo, tá? Me ferrei nessa. Minha mãe ficou em pânico, achando que se eu botasse o pé na rua, o Claudinei ia mandar algum pau-mandado “acertar as contas”. Segundo a teoria dela, todo encostado só era folgado porque tinha alguém para garantir as folgas dele.

Pelo que a gente soube, ele nem ficou tão puto com o meu pai prender o carro dele. O ódio foi comigo e com a Diana por causa dos arranhões no carro dele. A gente riscou de ponta a ponta. Inteiro. Capô, porta, porta-malas. Sem dó.

Tô nem aí. Homem safado tem mais é que se foder.

Uns dois dias depois, a gente entendeu o tamanho da cagada. Um senhorzinho apareceu no portão pra buscar o carro, todo riscado, de cima a baixo. Ele veio com cara de ofensa pessoal. Minha mãe cruzou os braços, desafiou o homem e chamou pra dentro. Virou grito.

— O carro do meu menino todo arranhado! Quem vai pagar isso? — O velho quis crescer pra cima da minha mãe.

— Ah vá! Seu lazarento dos inferno! Pois tu tire essa merda de carro daqui da minha garagem logo, pois senão tu vai é sair com esse carrro com os quatro pneus arriados! — minha mãe berrou de volta, dedo apontado na cara dele e tudo.

Eu parada na cozinha, só com a cabeça pra fora da porta, coração batendo no pé. O velho ficou pianinho, sacou o celular, e fez o pix na hora pro meu pai. Minha mãe ainda esperou a mensagem do meu pai chegar para só então liberar.

— Tira essa merda daqui.

O bicho tinha pegado.

Mariana sumiu daqui. Minha tia proibiu ela de vir. Problema nenhum… tirando a saudade que me mordia o dia todo. Ela dava um jeito de escapar e me ver rapidinho depois do cursinho, só não dava para dar uns pegas, isso a gente não fazia na rua.

A Diana? Evaporou. Quando respondia, era seca. A loira lerda me deu um ghost bem dado e pronto.

E não foi só elas. O resto da parentada também sumiu. Só quem resolveu dar as caras foi a desgraça do meu irmão mais velho, todo dia, o nojento vinha “dar conselho”, e ver se estava tudo bem, deve ter sido o meu pai que mandou. Não suporto ele nem a mulher dele. Ô criatura sebosa.

O do meio, que é mais velho que eu, ficou com meu pai. Esse aí não quer saber de nada, então pelo menos não enche. Melhor assim.

E foi isso que rolou nessas duas semanas — um silêncio estranho demais pra essa casa, juro. Eu tava no meu quarto, jogada na cama, fofocando com a Mariana por telefone. A gente falava de tudo e de nada, e eu já tava quase cochilando quando ouvi um barulho vindo da cozinha. Riso de mulher. Alto, debochado.

— Prima… acho que tem gente aqui em casa — mandei pra ela, já calçando os chinelos.

Desci da cama, fui até a porta do quarto, curiosa. O som vinha ficando mais nítido — era risada mesmo, e daquelas que me irritam porque parecem felizes demais.

— Vou lá ver quem é, depois te conto — digitei, já descendo as escadas.

A resposta dela veio rápido:

— Tá, mas depois me conta tudinho! Tô enchendo o saco da minha mãe pra me levar aí!

Revirei os olhos e fui andando até a cozinha. E lá estavam eles.

Sentados na mesa, rindo como se a casa fosse deles: o novinho da minha mãe — aquele babaquara que se acha — e, pra minha surpresa, a Carla. Minha prima.

Eu era doida nela. Tinha uma presença que tomava conta do ambiente, um jeito de existir que me deixava pequena e fascinada ao mesmo tempo. Bonita, com aquele cabelo loiro de farmácia, raiz escura aparecendo sem vergonha, e um corpo bonito, lembro até hoje ela dançando funck no meu quarto só de toalhas e nada por baixo. Todo mundo dizia que a Carla era “puta”, e ela nem fazia questão de negar — só sorria!

Minha mãe odiava quando ela estava por perto, dizia que era má influência para mim. Se minha mãe soubesse as merdas que eu já aprontei, ia mudar de ideia rapidinho e dizer que eu quem era má influência para a Carla.

— Oi, prima — falei seca, sem muita vontade, tentando disfarçar o incômodo.

Eu vou mandar a real sobre ela. Na verdade, eu não tinha motivo nenhum pra ter problema com a Carla. O que rolou foi que, meio que, a minha primeira vez, assim de pegação mais forte, foi com ela e o namorado. Eu era mais besta, não entendi direito o que tava acontecendo, só lembro de ficar assustada. E a desgraçada ainda ficou rindo depois, dizendo que eu ia “me catar”, que eu tinha gostado. Aquilo me deixou com medo dela, medo e raiva, tudo misturado. Desde então, cada vez que eu via a Carla, era como se uma parte de mim ainda estivesse presa naquele dia.

Esse pensamento me surgiu na cabeça ali na cozinha enquanto eu me aproximava, então emendei

— Sumiu, né?

— Pois é, Julinha… tá tudo corrido, prima. Tava trabalhando numa loja. Sabe como é. — respondeu, forçando um sorriso.

A cozinha parecia menor. Eu olhava em volta tentando entender o que tava acontecendo ali. Meu padrasto com a cara de tarado, os olhos fixos nas pernas da Carla, e ela, com aquele olhar desconfortável, e eu nunca tinha visto ela agir assim. Parecia que queria estar em qualquer outro lugar.

— E o que veio fazer aqui, prima? — perguntei atravessada, sem educação mesmo, já imaginando o que estava acontecendo.

— Então… sua mãe ficou de mexer numa roupa pra mim. É pra amanhã, mas ela mandou mensagem dizendo que vai atrasar um pouco.

Meu padrasto não disfarçava. Olhava pras pernas cruzadas dela sem cerimônia nenhuma. Eu sentia o asco subindo pelo corpo, o nojo dele e o jeito dela tentando fingir que não percebia.

— Prima, vamos lá pro quarto então? — falei já meio que dando as costas.

— Ô Julinha, a gente tá conversando — protestou o meu padrasto. — Isso é falta de educação.

Eu parei, voltei dois passos na direção dele e olhei bem no meio da cara.

— Você quer que eu fale pra minha mãe o que é falta de educação, tio?

Ele riu amarelo, se endireitou na cadeira e soltou aquele risinho frouxo, de quem foi pego no flagra. Idiota tarado de uma figa.

Carla passou por mim e foi direto pro meu quarto. No corredor, ainda andando lado a lado, ela soltou baixinho:

— Puta merda, prima, que cara mala. Como vocês aguentam?

— Ele tava te cantando, né? — perguntei, mesmo já sabendo a resposta. Abri a porta do quarto e continuei: — Entra, vai. Espera aqui comigo.

Quando ela entrou, o azedo do rosto foi sumindo e a Carla voltou a ser a que eu conhecia: petulante, dona de si. Deu uma varrida no quarto com os olhos, fez cara de nojo como se nunca tivesse pisado ali e se jogou na minha cama, tirando as sandálias com um chute.

— Prima… — eu mal tranquei a porta, serviço que era da Mariana, e um milhão de perguntas veio na cabeça — essas histórias que contam de tu… são verdade?

Ela se afundou nas almofadas e riu, pensativa.

— Caralho! Assim do nada? — Olhou para mim se ajeitando com cara de curiosa — De quê? Que eu sou puta?

Ela fez uma pausa, riu e quando o sorriso de diminuiu no seu rosto e ela ficou num tom mais sério e continuou.

— Prima, eu falava essas coisas pra meter medo em vocês. Não é assim desse jeito também.

— Tu dizia que ia pro baile e dava pra três, quatro caras — lembro direitinho o dia que tu falou isso; eu e a Mariana ficamos apavoradas.

Ela riu de novo, aquele riso de quem se acha acima de todo mundo.

— Claro que não, sua idiota. E se fizesse? Qual o problema?

Virou de bruços, o queixo nas mãos, me olhando de cima. Eu já tinha sentado no chão, encostada na cômoda.

— No máximo, beijei dois caras na mesma festa. Só isso.

Eu tinha feito coisa muito pior do que só beijar duas pessoas no mesmo dia. Eu não podia julgar. Mas existia um elefante enorme no meio da sala e agora ele ia começar a dançar.

— Assim… sabe aquele dia da lavanderia? — ela começou, cautelosa, e só quando eu assenti, continuou. — Pra mim também foi novidade. Eu nunca tinha feito nada assim.

Eu podia responder mil coisas, mas travei.

— Eu tava no período fértil, sabe? Tesão lá em cima… e você apareceu. O resto você sabe.

— Sei.

Eu queria dizer o que senti, juro. Mas a voz não vinha. Uma vergonha besta, um nó na garganta, vontade de chorar sem motivo. Eu morria de medo de ganhar a fama dela e virar a vergonha da família.

— Carla, você contou pra alguém? — minha voz saiu um miado.

— Não, tá maluca? — ela mudou a expressão, mais firme. — Prima, eu não fico fazendo essas coisas. Aquilo foi uma coisa que rolou. E ficou lá. Só isso.

Continua