Capítulo 61
Ela parou de tremer e o corpo perdeu a firmeza. Segurei pela cintura e ajudei a tombar na cama. Caiu sentada, pesada, batata podre: suada, arfando, rosto vermelho, olho perdido. Por um segundo achei que ia passar mal. Fiquei muda. Ela me comeu com uma raiva tão focada que pensei que fosse comigo, que estivesse descontando algo. Eu, ainda estava meio elétrica, com a buceta tilintando de sensível — não sentia dor, mas a pele estava quente demais pela fricção crua; a gente não estava tão lubrificada e os pelos crescendo deixavam tudo mais áspero.
— Nossa… eu preciso parar de fumar. Tô sem ar — ela reclamou, a mão no peito, rindo de nervoso.
Eu nem sabia que ela fumava. Nunca vi. Deve ser escondido da minha tia. Eu mesma nunca encostei em cigarro. Nem bebida me anima. E detesto beijo com gosto de cinzeiro. Com a Carla, mesmo exausta e suada, o gosto era de sal e respiração quente. Eu olhei pra ela largada na cama, ainda meio bruta no olhar, e senti aquela mistura besta de alívio e orgulho: ela me me fez de gato e sapato e eu só olhando para ver se teria um repeteco.
Ela me olhou torto, dedo na boca pedindo silêncio, e apontou pra porta. Foi até o interruptor, deu um clique seco e apagou tudo. O quarto afundou no escuro e só sobrou a penumbra da janela marcando o contorno do corpo dela. Carla se ajoelhou devagar, encostou as mãos no chão e enfiou o rosto no vão debaixo da porta, como quem fareja barulho. Eu fiquei, respiração curta, e levantei engatinhando até encostar meu joelho no dela, tentando ver o que ela tava tentando ver.
Tinha alguém ali. Do outro lado, parado no corredor, um vulto quieto, do tipo que segura a própria respiração pra ouvir melhor. O silêncio ficou grosso. O corredor parecia uma garganta. Me deu um gelo que veio de dentro, subiu pela coluna e travou meu maxilar. No fundo eu sabia quem era a pessoa, e era isso que deixava tudo pior, como se o nome estivesse escrito do lado de lá e eu não quisesse ler.
— Veste a roupa — ela sussurrou, sem olhar pra mim, já puxando a saia que tava na cintura e alisando o tecido pra baixo.
Eu catei meu short no escuro, dedos tontos, coração batendo no pescoço. Enfiei uma perna, depois a outra, puxei até a coxa com a pressa errada, a calcinha entrou toda embolada no meio da xota. Meu olho continuou colado na fresta como se a porta respirasse, abrindo e fechando um fio de luz, e cada abertura dizia a mesma coisa: tem alguém ouvindo a gente.
A porta abriu de supetão e o barraco estourou.
— Tá fazendo o quê parado aí, seu pateta? — Carla berrou com o pulmão cheio.
Mais uma prova de que ninguém lá em casa respeitava meu padrasto.
— Nada… — do ângulo que eu estava eu nem vi a cara dele. Só ouvi a voz torta de errado.
— Então vai fazer nada em outro lugar — ela cortou, enfiando metade do corpo pra dentro pra checar se eu já tava vestida. Ligou a luz de novo. — Há quanto tempo você tá aí?
— Eita, o que foi? Tá achando que eu tava ouvindo atrás da porta? Me respeita, dona Carla, que eu falo com sua mãe.
— Me respeita você, seu tarado dos infernos. Ficou ouvindo atrás de porta agora, sim ou não?
— Que ouvindo, criança. Vim chamar vocês pra comer e parei pra ver uma mensagem.
— Ah, vai se foder, seu merda. Sai daqui, sai. Tu tinha era que levar uma surra de pau no meio da rua.
Quando ela falou isso, meu cu trancou. Ele era um idiota, mas ainda era meu padrasto e a gente era meio que obrigadas a respeitar ele. Eu senti o tamanho da merda chegando. Daquelas grandes, de respingar na casa inteira.
Ele ainda tentou falar alguma coisa, mas o vocabulário da minha prima era munição pesada. Meu padrasto engoliu seco, gaguejou duas ou três palavras e vazou.
Quando a briga acabou, ela voltou pro quarto rindo. Eu tava puta, mas mais com medo do que puta. Se ele abre a boca pra minha mãe e diz que eu tava transando com a Carla… até eu desmentir — e se eu conseguisse desmentir — já tinha virado novela. Nem quis pensar nisso. Minha mãe ia me arrebentar na porrada.
— Caralho, sua maluca, do que você tá rindo? Ele vai correr contar pra minha mãe que tu xingou ele e, pior, vai falar o que a gente tava fazendo.
— Deixa de ser burra, pirralha. Você acha que ele vai dizer que tava ouvindo a gete transando atrás da porta?
Parei, pensei um segundo.
— É… faz sentido.
— Além do mais, ele é covarde e todo mundo sabe. “Sapatão” e “viado” a família hoje tolera. Agora homem que fica correndo atrás de menina nova… aí vira estampa de camiseta da saudade.
Carla abriu meu armário, catou mais lenços umedecidos e limpou as pernas, o ventre, o canto da boca. Eu fiz igual. Ninguém ia descer pro banheiro agora pra esbarrar nele. O do meu andar até existe, mas é castigo. Os canos rangem, água que sai com cheiro estranho, a descarga que, se precisar da segunda, te deixa na mão esperando a caixa encher por uma eternidade. O azulejo velho da época que a casa foi construída, horroroso. No teto, a portinhola de madeira dá praquele “sótão” que não é sótão, é um vão entre telha e laje. De noite, vira zoológico: gambá tropeçando, gato correndo, pombo batendo asa, eu morro de medo achando que é assombração, por isso nem coloco o meu pé naquele banheiro.
O silêncio pesou e a dúvida veio.
— Carla, quando eu cheguei você tava toda desconfortável com ele na cozinha. Por que não brigou com ele lá?
— Julinha, porque ele é aquele tipo de macho pau no cu. Não faz nada direto. Solta gracinha de leve aqui, outra ali — ela sentou na beira da cama, olhar meio vago. — Aí, se tu for contar para alguém, “ele me assediou”, tu nem consegue repetir exatamente o que foi que ele falou pra provar. Fica tudo no quase.
— É. Ele é assim mesmo. E não tira o olho do meu corpo. — me sentei do lado dela também olhando pro vazio.
— Do meu também. Olhar eu não ligo. Agora, ficar sozinha com homem te olhando… isso me dá medo.
O ar ficou pesado de indignação. Eu olhei pra ela, ainda sem calcinha, com as pernas cruzadas e abertas de frente pra mim na beira da cama.
— Sinceramente, eu nunca entendi minha mãe. Uma mulher forte, querer um bosta desses.
Ela riu como quem já sabe a resposta.
— Julinha… — aquele tom arrogante de sempre — vou falar, mas não é pra ficar puta, tá?
— Tá. Fala.
— Ele é bonito e novinho pra ela. Ela tira onda com as amigas mostrando que ela tem um novinho. O quê, uns trinta e dois, trinta e cinco no máximo? E tua mãe com uns quarenta e cinco, né?
Fez cara de safada, mordendo o canto do lábio.
— É, quarenta e quatro — falei fazendo as coisas da diferença.
— No mínimo ele deve mandar bem, sei lá. Porque de grana é duro.
— Mandar bem? Nunca ouvi um pio dos dois no quarto deles, parece até que nem transam… mas tem uma coisa que joga a favor dele — cochichei, colando na orelha dela.
— O quê? Fala logo!
— É pausudo, tá minha filha?
— Ah, mas isso dá pra ver, né, Julinha! — ela riu, toda safada.
— Caralho, garota, você fica manjando o pau dos homens da família?
— Porra, Júlia, como é que tu não vê a mala do mala quando ele entra na piscina?
Carla falou rindo daquele jeito que mistura indignação com safadeza, bem coisa de amiga fofoqueira. E eu, do nada, resolvi entrar na onda. Podia ter ficado quieta? Podia. Mas coçou na língua.
— Posso te contar uma coisa? Jura por tudo que é sagrado que não conta pra ninguém?
— Juro. O que foi?
— Eu… vi o pau dele. — falei quase sussurrando.
— Como assim, mulher? Onde? — ela mudou se posição sentando agora de frente para mim com a cara quase colada na minha.
— Tenho uma foto.
— Tu tem? Me mostra agora. — ordenou rindo
Peguei o celular, abri minha pastinha secreta, sem julgamentos, tá? E achei. Tinha uns quatros diferentes lá, escolhi o dele e virei a tela pra ela.
— Jesus amado… — ela arregalou os olhos, mão na boca. — Tua mãe é muito arrombada.
Eu ia me ofender, mas o espanto dela foi tão genuíno que eu só comecei a rir. Fofoca entregue e pau no meu cu.

