Capítulo 63

EEu esqueci da Carla e de tudo que tinha rolado naquele quarto na última hora. Cruzei a porta feito besta desgovernada, quase caí nos degraus, bati o ombro no corrimão e entrei na cozinha arfando. Minha mãe e minha tia estavam enfiando compra em cima da pia, pacote de arroz, óleo, papel higiênico, aquela feira de atacadão que elas sempre dividiam. Mas nada da Mariana.

— Cadê minha prima? — gritei, desesperada.

Nem precisou resposta. Da porta da sala veio um berro solto, aquele grito desaforado que arrebenta ouvido e espanta barata. As duas na cozinha começaram a gritar também, gritando mais ainda e mandando a gente parar com a gritaria, eu ignorei e voei pra sala. Minha prima estava lá, com uma caixa enorme na mão, vermelha e rindo felicidade. Eu pulei nela sem freio, abracei apertado, prendi o pescoço, enchi a cara feia dela de beijo estalado. A caixa caiu no pé dela, ela reclamou, mordeu meu braço, me xingou rindo, e eu apertei mais forte, feliz e sem vergonha nenhuma — Meu Deus! Como eu amo a minha prima.

Exagerada, eu? Foda-se a sua opinião.

Não deu tempo de conversa. Tinha caixa, saco, garrafa e bandeja até o teto. Minha tia queria descarregar tudo ali e depois ainda levar metade pra casa dela. Peguei sacolas pela alça que cortava o dedo, equilibrei fardo de leite no quadril, empurrei porta com o ombro. Mariana entrou no ritmo comigo, serviço de formiguinha, indo e voltando da garagem pra cozinha, da cozinha pro quintal, sempre com mais um saco no braço. A gente botou a fofoca em dia no meio da via-crúcis: quem sumiu, quem apareceu, quem tá devendo, quem anda comendo quem.

Carla desceu e fingiu que nem era com ela. Encostou na bancada, ficou falando com a minha mãe sobre um vestido enquanto a velha separava arroz, açúcar e papel higiênico em pilha. Cara de turista em dia de mudança. Era engraçado ver a cara da minha mãe pra Carla: queixo duro, olho de desconfiança, aquele meio sorriso que não é sorriso. A velha nunca curtiu a figura.

Eu e Mariana suamos. Fui com cesta de legumes, voltei com engradado, amarrei boca de saco com nó cego, anotei o que ia pra tia, o que ficava. Mariana me fazia rir com história de um peguete novo e eu ria alto, passando álcool na mão e pegando mais coisa. De canto de olho, vi a Carla quieta demais, sem graça com a presença da Mariana. Só depois me caiu a ficha: eu tinha esquecido dela bonito quando a Mari entrou. Desliguei a cabeça quando soube da Mari e caguei bonito para ela.

Pensei que valia pedido de desculpas. Eu tinha acabado de gravar um vídeo dela me chupando e ela me fizera gozar umas três vezes, fácil. E eu ali, besta, cheirando a creme e mercado, rindo com a Mariana e deixando a Carla de escanteio. Guardei pra resolver depois, porque, do corredor, meu padrasto tinha acabado de aparecer sem camisa e banho tomado. Meus olhos bateram primeiro na documentação do transeunte. Tava em dia, mole. Chegou na cozinha, deu um beijinho na minha mãe — safado, pensei — falou o mínimo comigo e ocupou o lugar dela, e depois minha mãe sumiu pro quarto com a Carla para ver as coisas de vestido.

Aí me bateu o estalo: e se a Carla fosse tirar as medidas e minha mãe reconhecesse a minha calcinha nela? Dava pra saber. Aqui em casa tinha rolado a tal guerra das calcinhas. Muita gente vinha por causa da piscina, largava calcinha no cesto ou no banheiro, e minha mãe ficava puta de ter que lavar e guardar esperando dona aparecer. Saiu regra: eu tinha que marcar a etiqueta das minhas. Se achasse calcinha sem marca no lugar errado, era lixo.

E não foi só isso. As belezuras vinham de biquíni e, na hora de ir embora, catavam as minhas. Eu ficava possessa. Deu gritaria, tio discutindo, minha mãe cobrando sobrinha, um inferno. Passou, mas a regra ficou. Então, se por acaso a velha reconhecesse a minha calcinha na Carla e visse a etiqueta, e se perguntasse, a Carla ia mentir e eu ia ter que me fazer de doida dizendo que não lembrava. No fim, era uma calcinha.

Eu odiava que usassem as minhas. Nem a Mariana usava.

Falando na Mariana, assim que a gente terminou de guardar as coisas ela soltou um “vou ficar aqui!”, me pegou pelo pulso e subiu as escadas correndo. Minha tia nem teve tempo de chiar. E roupa? Problema nenhum. A Mariana já ocupava um quinto do meu guarda-roupa. A briga era ela levar as coisas dela embora, não pegar as minhas.

A porta do quarto bateu, ela virou a chave e veio me lascando um beijo. Eu pensei “ferrou”. A língua dela veio quente, urgente, e meu corpo respondeu no automático, porque eu tava com saudade do beijo dela, da forma como ela prende meu lábio de baixo, como um carinho gostoso. Só que a memória veio na mesma hora: Carla, a língua, aquele gosto. Senti um choque de risada por dentro e uma pontada de culpa, tipo assim, “meu Deus, se a Mariana descobre que sem querer chupou a Carla de tabela… e eu nem escovei os dentes ainda”.

Eu recuei um milímetro, com a testa encostada na dela, respirando nosso ar misturado.

— Ei, ei… tô toda cagada, prima. Deixa eu tomar um banho primeiro?

A petulante me largou e

— Julinha, você escolhe as palavras mais broxantes do planeta — ela riu, me dando um monte de beijinhos.

— Eu quis dizer suada. Zoada. Sei lá.

Eu tava de protetor de calcinha por causa da melação do depois; sempre fica meio que escorrendo. Provável que tivesse ficado uma mancha amarelada. Se ela visse, ia perguntar, então cortei caminho.

— Vou tomar um banho rapidinho. Depois você vai, tá?

— Vamos juntas? — ela se fez de desentendida, toda insinuante.

— Aham, claro. A casa tá acordada, maluca. Eu primeiro, você depois.

Fui no armário, separei uma muda limpa, peguei a toalha que eu tinha deixado secando atrás da porta e parti. No banheiro, a primeira coisa foi puxar o celular. Tinha que ter mensagem dele. Nada. Sumiço total. Não que eu quisesse conversa, mas, né… um “oi” ao menos.

Abri de novo o vídeo que gravei da Carla. Dava pra ver tudo, nítido. Ela, eu, meu quarto. Quando eu gozei, o celular escorregou e minha cara entrou no quadro. Se isso vaza, eu tô ferrada. O pensamento apertou o peito. O estômago virou na hora. Sorte que eu já tava sentada no vaso.

Salvei o vídeo da Carla comigo na pasta descondida de rolas, junto com o que ele me mandou. Limpei os rastros do celular e fiquei encarando a tela enquanto a natureza fazia o serviço. Deu vontade de ver de novo, mas eu precisava ficar quieta um pouco. A Mariana ia querer me pegar assim que a luz do quarto se apagasse, e minha bateria tava baixinha, baixinha! E nem tou falando da bateria do celular, eu só queria era dormir depois de tantas emoções no dia.

Tomei meu banho, lavei o cabelo mesmo odiando fazer isso à noite, botei roupa limpa, lavei a calcinha, deixei pendurada no box e saí. Passei pela cozinha: meu padrasto sentado, minha mãe com um vestido na mão, agulha e linha, cheia de coisa espalhada em cima da mesa. A presença dele me travou um pouco e soltei a primeira que veio na cabeça.

— Mãe, tem alguma coisa pra comer?

— Ter, tem. Mas não suja minha cozinha. Pede lanche pra você e pra Mariana, pede? — ela molhou a linha na língua. — Tem dinheiro?

— Tenho.

Meu padrasto cortou na hora. Ele tinha me dado grana por uma faxina que eu nem queria fazer. Eu só aceitei pela grana por que eu queria dinheiro para ir para o motel com o moço lá e acabei nem indo.

— Falando em dinheiro… você tá me devendo, hein, Julinha?

Olhei pra minha mãe pedindo socorro. Ela entendeu.

— Para de cobrar minha filha. Se quer faxina, faz você ou paga uma faxineira de verdade. Ela vai quando eu disser que vai. E você resolve isso comigo, entendeu?

Ele fez um muxoxo, engoliu seco e calou.

— E você, pro seu quarto. Pede o lanche. Depois a gente conversa.

Eu fui embora sem nem dar boa noite, tinha me livrado de uma. Eu tinha colocado mais gasolina naquele problema, esqueci completamente da possibilidade de estar com ele sozinha na casa dele, imagina se ele me cerca e quer me comer a força? Eu não acho que ele faria isso, mas eu sei que tentaria.

Subi as escadas e fui para o quarto, agora teria que lidar com a energia acumulada da Mariana.