Capítulo 70
Eu fiquei um tempão sentada na escada, sozinha, parada, olhando pro nada feito um fantasma. Eu nem sei o que pensei. Talvez nada. Talvez eu tenha só ficado ali desligada, com a cabeça zumbindo. Eu tava em choque. Quando consegui levantar e ir pro quarto, parecia que o corpo tava inteiro, mas por dentro eu tava dormente, meio oca.
Mariana tava deitada no colchonete no chão, aquele que a gente sempre armava e quase nunca usava porque ela acabava pulando pra minha cama. Eu deitei na minha cama, olhei o quarto todo, escuro, quieto, só o barulho da rua passando pela janela. O coração batendo devagarzinho, leve, vazio. E desabei.
Quando o despertador tocou de manhã, Mariana já tinha levantado. O colchonete ficou todo jogado pra eu arrumar, como sempre. Desci pra cozinha e vi minha mãe colocando a água pra ferver pro café.
A cozinha de manhã tinha cara de segunda-feira: azulejo frio no pé, luz amarela meio preguiçosa, a mesa de fórmica riscada de faca, a geladeira roncando baixo e o cheiro de café começando a cheirar no ar. Minha mãe mexia a colher no canecão de água do café, eu nunca entendi o motivo dela mexer algo que era só água que ia ferver.
— Bom dia, mãe. Cadê a Mariana?
— Ué, já foi. Disse que precisava sair cedo — ela me lançou aquele olhar de raio-x, seco. — Não te falou nada?
— Não. Achei que não era tão cedo assim — bocejei para ganhar tempo. — Vou escovar os dentes.
Saí pela tangente. Em dois segundos ela já tinha sacado que eu e a Mari brigamos feio. Minha mãe conhece a gente melhor do que a gente se conhece. É impossível esconder.
No banheiro, abri o armário e encarei o amontoado de escovas sem dono. Passei o dedo pelos cabos até achar a minha. A outra que eu reconhecia era a da Mariana. O resto podia sumir que eu nem notava. Estranho como tudo em mim esbarrava nela. Quando ela faltava, abria um buraco grande dentro de mim, e o silêncio caía lá dentro e ficava.
Espremi o restinho de pasta, a tampa caiu dentro da pia e eu xinguei. Escovei os dentes devagar, olhando meu rosto amassado no espelho, e a pergunta veio sozinha: “eu conto pra ele que a Mariana sabe?” Enxaguei a boca, bati a escova na borda, pensei melhor. Não. Se eu avisasse, ele podia querer ir falar com ela “pra garantir silêncio”, e aí sim ia dar merda. Se ela ficasse com medo, ia pedir ajuda e, pedindo ajuda, ia acabar entregando tudo. Se nada acontecesse, a Mariana não contaria pra ninguém, eu conhecia a peça. Aquilo ia apodrecer dentro dela, mas não ia sair pela boca. Por isso eu sempre confiei naquela piranha.
Guardei a escova, passei água no rosto, respirei. Pelas minhas contas, ela ia passar uns três dias sem olhar na minha cara. Eu tinha que dar esse tempo. Só que dessa vez tinha sido “punk” de verdade, mais pesado do que qualquer briga nossa. E eu ainda tava comprometida de ir na casa dele. Uma parte minha, a safadeza, empurrava pra ir. A outra travava. Eu não queria.
Sequei o rosto na toalha, ajeitei o cabelo com a mão, e fechei a torneira brigando para parar de gotejar.
Eu já sabia.
Eu tinha um plano.
Primeiro eu precisava convencer minha mãe, de novo, que não era uma boa ideia eu ir fazer a faxina. Ela ia achar que eu tava doida, mas era o único jeito. Eu ia devolver o dinheiro pra ela, falar direitinho, e deixar que ela mesma dissesse pra ele que foi ela quem não deixou. Assim eu saía por cima. Depois eu usava isso com a Mariana pra provar que me arrependi. Ela me perdoava, ficava de cara feia por uns dias e pronto, a vida seguia.
Enxaguei a boca, lavei o rosto e fui direto pro chuveiro. Eu tinha dormido sem tomar banho e o corpo tava com aquele cheiro azedo de pau de homem encruado. A água caiu quente, abrindo a pele, e eu fiquei ali refazendo o plano na cabeça. Via minha mãe perguntando por que a Mariana tava esquisita comigo. Eu, no modo escandalosa, gritando que ela era doida, exagerada, inventando qualquer coisa. Minha mãe, pra não ter que se meter, ia fingir que acreditava e mudava de assunto.
Plano fechado.
Me enrolei na toalha e subi voando a escada. De rabo de olho, vi meu padrasto na cozinha, passando manteiga no pão como se fosse domingo. Fingiu que não me viu. Eu fingi também.
No quarto, a rotina: caçar uma calça que passasse na bunda sem estar puída demais, uma blusa qualquer, sutiã confortável, livros na bolsa, dar uma carguinha no celular. Eu ainda tava escolhendo a calça quando a porta abriu sem bater. Minha mãe entrou séria, aquele sério de conversa chata.
— Senta aí. Eu quero conversar com você.
Por um segundo eu jurei que ela sabia de tudo. Gelei.
— O que foi, mãe? — senti o pânico na minha cara, impossível esconder.
— Eu conversei com o teu padrasto — a lágrima já se formava no canto do olho — e eu quero te falar o que eu decidi com ele.
Meus pés foram sozinhos até a cama. Sentei. O corpo afundou no colchão. Parecia sentença.
— Eu pensei bem. Eu não criei filha minha pra ser faxineira, não. Eu gosto que você tenha pulso pra trabalhar, mas eu não saí do interior, não ralei que nem o diabo, pra você ter o mesmo futuro que eu. Você vai estudar e arrumar um emprego decente.
— Ah… — saiu um som patético, meio risinho de incredulidade que morreu no ar, o alívio foi melhor que soltar o xixi depois de muito apertada.
Ela continuou, firme.
— Filha, é trabalho honesto, eu sei. Mas não é pra você agora. Eu não quero que você tome gosto por trabalho antes da hora.
Fiquei olhando pra ela e montando a cena na cabeça. Ele deve ter falado alguma coisa cedo, plantou a ideia, e ela, que já não queria, só precisou de um empurrão. Eu via a preocupação inteira dela ali, escancarada, como se estivesse tentando me puxar de um buraco que ela conhecia de cor.
Eu sabia que tinham dado uma trabalhada na cabeça dela, mas o argumento fez sentido. Minha mãe veio pra cá muito nova e só pegou trampo de merda porque não tinha estudo. Minha tia, mãe da Mariana, que é mais nova e estudou mais, vivia repetindo que jovem não tinha que “pegar gosto” por trabalho antes de terminar de estudar, porque acha que o dinheirinho resolve a vida e encosta os livros. Todo mundo chamava ela de doida. Só minha mãe e, pasmem, meu pai concordavam.
Também, meu pai concorda com tudo que a minha tia fala. Um dia eu conto essa história. Ele só ficou com a minha mãe porque a minha tia tinha juízo e chutou ele. Outra hora eu conto.
Eu só ouvi.
O meu plano da faxina morreu ali. Abri a carteira dentro da mochila, tirei o dinheiro que eu andava carregando pra tudo que é lado, contei e estendi pra ela. Ela recusou.
— Você pode ficar — ela respirou fundo, parecia que ia chorar, de verdade. — Compra tuas maquiagens e essas roupinhas da China que você gosta, tá, filha?
— Mas mãe, não é justo… — eu nem sei por que fui argumentar. Saiu quase chorando, emocionada, arrependida.
Eu não sei o que atravessou ela naquele segundo, mas aquela mulher dura na minha frente ficou a um passo de desabar. E desabar não é coisa que a minha mãe faz. Eu vi quando ela puxou o ar do cômodo inteiro, encheu o peito, o olho virou raiva, e ela ligou o modo turbo.
— Eu falei que pode ficar. Tá com pena de dinheiro de homem? Aquele vagabundo não gasta nada nessa casa e só come.
Eu levei um susto, como se eu não conhecesse esses surtos dela, e soltei a provocação na hora:
— E come bem, né, mãe? — Já protegendo meu olho ruim para não levar uma pancada ali.
A piada bateu certinho. O olho dela pulou da emoção pra aquela raiva de mentira, quase rindo. Ela catou o chinelo, quase tropeçou no próprio pé, e veio na minha direção com a “surra” coreografada, esquentando a minha perna na chinelada.
— Você me respeita! — falava rindo, errando o alvo de propósito. — Tá achando o quê?
— Que a senhora deu chá de buceta no novinho.
— Julinha! Me respeita! — e riu mais alto, tentando segurar a pose.
Eu fui andando de costas, segurando a toalha e gargalhando, e ela atrás de mim, chinelo em riste, toda atriz.
— Mãe, não adianta fingir moral agora não, viu? — eu cutuquei. — Quem sai do quarto descabelada às oito da manhã não é a santa da paróquia.
— E aquele traste me descabela como? — ela rebateu, mas a cara de safada entregou. — E se você falar isso perto de vizinho, eu te arrebento!
Ela tentou acertar outra, errou de novo e chorou de rir.
— Eu criei uma malcriada. Deus que me perdoe.
Ela respirou fundo, ainda sorrindo, mas o olhar macio voltou, aquele que encaixava meu rosto no dela.
— Vai se arrumar, praga. E guarda esse dinheiro. Compra tuas tralhas. Mas estuda e não faz merda com a sua vida.
Difícil era a parte de não fazer merda.

