Capítulo 71
Os dias passaram num piscar de olhos depois daquele caos. Era mês de vestibular e eu tinha três provas infernais em sequência. Mariana só me respondeu uns cinco dias depois, no mesmo dia em que tirei o tampão do olho. Mandou “sim”, “não” e “tá”. Disse que viria aqui pra gente conversar e não veio. Falou que precisava de mais tempo pra pensar no que viu e que estava decepcionada comigo. Tudo bem, eu entendo, mas eu só queria que ela me perdoasse e a gente seguisse. A coisa nem foi com ela, afinal.
Nem deu tempo de remoer, a vida me engoliu de uma vez.
Virei uma máquina: curso–casa–curso e só. O povo do cursinho começou a aparecer aqui depois da aula e ficava até de noite estudando. Sim, eu tenho amigos lá, mas quase não falo deles porque são todos ricos e eu sou bolsista. Eles marcam rolê em lugar que eu nem sei que ônibus passa, então nunca fui muito próxima. E como vocês só ligam pra quem eu transo, dane-se a história deles.
Minha mãe me aboliu das tarefas desde que eu ficasse com a cara nos livros. Cumpri. Nem água eu pegava, ela trazia o copo cheio para eu nem perder tempo indo buscar. Sem drama: ela viu meu esforço e entrou comigo nessa de conseguir a vaga para a pública.
Diana tentou dar o ar da graça nesse tempo puxando assunto de vestibular. A loira tinha me dado ghost e reapareceu me chamando pra “estudar” na casa dela. Depois da treta com o Claudinei, bateu um medo nela e começou a me tratar como leprosa. Agora vai pro caralho, não quero mais papo com essa loira lerda.
O maior acontecimento foi com o traste do meu padrasto. Ficou doente e foi parar no hospital. Eu juro por Deus que eu nunca desejei o mal dele. Mentira, desejei, mas não desse tamanho. Tá de cama quase um mês se recuperando. Disseram que ele teve um problema lá e os médicos ferraram o rim com medicamento errado. Agora precisa de ajuda pra tudo e nem sabem ao certo se ele vai se recuperar disso.
Chegou dezembro, saíram os resultados e eu passei. Prazer: a mais nova futura universitária desta casa. Foi uma alegria da porra quando saiu o primeiro resultado. Meu pai veio, soltou até fogos na rua. Teve churrasco, feijoada, festa e primo sendo humilhado de brinde.
— “Viu? Sua prima estudou e conseguiu, vai ser alguém na vida. E você?” — minhas tias, sempre finas.
A partir dali, eu virei “a prima que deu certo”, referência oficial pra humilhar quem odeia estudar.
Só que a festa não ficou completa porque, com o traste doente, minha mãe teve que se virar em duas. Aí trocamos os papéis: quando eu tava na reta final, ela fez tudo sozinha; agora, com ele pior, eu tomei as rédeas da casa e fiz as tarefas. Minha tia vinha ajudar, meu irmão resolvia mercado, e meu pai levava e buscava o padrasto pras sessões. E fez de coração, sem reclamar, mesmo detestando o sujeito.
A casa nem tem tanta coisa assim pra fazer, o problema é que sempre aparece gente. Pra resolver, minhas tias proibiram os filhos de virem perturbar. Visita virou “social”: vem, toma um café e vaza. Claro que isso também ferrou a Mariana; mesmo que ela quisesse, não dava pra aparecer aqui sem ouvir esporro.
A cozinha tava silenciosa, só o chiado baixo do radinho e o barulho seco dos grãos caindo na bacia. O cheiro de alho e óleo frio pairava no ar. Minha mãe tava ali, curvada sobre o feijão, com o olhar meio perdido, do jeito que fica quando a cabeça dela viaja pra longe. Sentei do lado, não pra ajudar, era mais para fazer companhia, sabe?
— E aí, mãe, o Natal, como vai ser? — perguntei, só pra puxar assunto.
Ela suspirou fundo, sem levantar o olhar.
— Nem sei, Julinha. Tô desanimada, sabe?
O radinho chiou uma música velha de Roberto Carlos. Eu sabia que ela tava triste, mas resolvi fazer do meu jeito: enchendo o saco pra ver se arrancava um sorriso.
— Julinha, não mãe. Agora é “doutora Júlia” para a senhora, por favor.
Ela ergueu os olhos por cima dos óculos, com aquela cara de ódio que era praticamente a expressão natural dela, e riu sem me dar assunto.
— Amanhã eu monto a árvore e vejo com as tias. A gente dá conta de tudo, a senhora só precisa aparecer bonita na ceia.
— Obrigada — ela disse, parando um instante, pensou e completou com um sorrisinho — doutora Júlinha.
— “Júlia”, mãe! Doutora Júlia! — corrigi, empinando o nariz.
Ela cutucou a peneira e me empurrou o feijão.
— Cata direito se vai ajudar. Tá deixando passar pedra e galho, menina. — O tom seco dela me soou quase reconfortante, o jeito mais comum de demonstrar amor que minha mãe tinha.
— Ih, já tá boa pelo visto — provoquei, rindo.
Ela balançou a cabeça, mas os cantos da boca já denunciavam que tava menos pesada.
— Nada disso. Tava pensando aqui… sabe a Kátia, aquela minha amiga rica?
— Sei, a tia Kátia que me dava aquelas bonecas maneiras. Sumiu, né? Que se deu dela?
— Ela tá precisando de alguém de confiança pra ficar na casa dela, cuidando do filho por quinze dias. Paga bem.
— Eita. Quantos anos tem o menino? — perguntei, empurrando um feijão quebrado pro canto.
— Uns anos mais novo que você, acho. Eles foram viajar, mas o garoto não quis ir. Quer passar as férias jogando na internet, esses jogos de vocês aí.
— “Vocês” não, mãe — respondi, erguendo o queixo. Eu só estudo. Por isso que eu sou bem-sucedida na vida.
Até eu ri disso depois que falei.
O “aham” dela veio com veneno suave e ela continuou catando feijão como quem conta moeda.
— Eu tava precisando desse dinheiro, mas não posso ficar presa lá por causa do seu padrasto. E também não quero deixar a Kátia na mão. Ela quer gente de confiança — disse, soprando um grão preto pro lado da pia.
Eu apoiei o cotovelo na mesa e fiquei olhando a peneira subir e descer, o radinho chiando uma propaganda besta.
— Ué, mas o garoto não fica sozinho? — perguntei, girando a cadeira. — Ele vai botar fogo na casa?
— Justamente. Ela tem medo. Ele é avoado.
— Tem que cozinhar? Lavar roupa? Faxina? — já colei na ideia, dava pra sentir.
— Não. É ficar lá mesmo. Eles têm empregada. Só precisa mandar o menino dormir, comer e tomar banho. Tá de férias. No Natal eles já tão de volta.
O vapor do arroz começou a subir da panela. Eu pensei rápido, cabeça fazendo conta. Eu podia fazer isso, fácil.
— Então é ser babá. Eu topo, mãe.
Ela me mediu por cima dos óculos, aquele olhar que atravessa roupa.
— Mas esse dinheiro era pra pagar os consertos da piscina. Você vai trabalhar pra isso? — a cara dela dizia que duvidava que eu fosse capaz de um ato de altruísmo.
— Vai gastar tudo na obra? — perguntei, meio no impulso, meio já me arrependendo de ter perguntado.
— Não paga nem a metade. Tem que trocar a bomba, esvaziar, fazer azulejo. Seu pai ia pagar o resto.
O arroz estalou. A colher de pau bateu no fundo da panela. Eu dei um riso curto.
— Piscina foi invenção do meu pai. A senhora sempre odiou. Custa caro pra cacete, dá trabalho e ninguém ajuda.
Ela encostou a peneira, lavou as mãos devagar.
— Odeio mesmo — disse, mas com a voz cansada em vez de brava. — Só que já que tem, tem que arrumar.
Eu puxei a bacia de feijão pra mim.
— Eu fico com o menino, junto o dinheiro e a gente resolve a parte que der. Fica leve pra senhora. E eu treinei anos mandando meus primos tomarem banho. E eu sou sua filha né, é só imitar sua cara e dar dois berros que tudo se resolve.
Ela revirou os olhos, mas a boca entregou um quase sorriso.
— Vou falar com a Kátia então. Se ela topar, você vai. E não me passa vergonha ouviu?
— Eu? Vergonha? — bati continência de brincadeira. — Doutora Júlia, rapá, a senhora tinha que cobrar mais caro por isso.
Eu ia ser babá!
Era meio que um desejo de adolescente, igual filme americano sabe? Eu estava feliz para caramba, subi as escadas correndo para contar para alguém, sentei na cama e quando eu me toquei, lembrei que Mariana não estava falando comigo.
E chorei sozinha.

