Capítulo 72

Kátia era muito amiga da minha mãe. Passou perrengue igual a gente, até achar um cara com grana e mudar de vida. Vivia lá em casa, mas brigava com a minha tia e viajava o tempo todo. Acabaram se afastando. Uma das tretas foi por minha causa: minha mãe tinha prometido que ela ia ser minha madrinha quando eu nasci, a minha tia, mãe da Mariana fez escândalo falando de “laços de sangue”, que aquilo seria um absurdo e minha mãe cedeu. Fiquei com uma madrinha dura.

Eu só me fodo.

Fui lá na casa dela. Longe pra caramba. Condomínio de rico, portaria com segurança educado, rua silenciosa, ninguém sequer perambulando por ali. A casa dela era grande e moderna, muita janela, pé-direito alto, sala aberta, cozinha com ilha e tudo brilhando. Meu pai me deixou na porta e foi embora rápido. Ele não curte ficar perto de rico, fica sem jeito o pobre.

Eles me receberam bem. Tia Kátia me tratou como se eu fosse visita importante, me puxou pra mesa do café. Sinceramente, achei que ia ter um banquete, mas era uma mesa bem chinfrim, lá em casa até em dia ruim, tinha mais coisas sendo oferecidas para as visitas. Falei foi é nada.

O tio Rubens tava no celular, falando com a gente de vez em quando. Cinquentão, arrumado, aquele tipo que se cuida. A tia continua bonita do jeito que sempre foi, tudo no lugar, roupas simples mas caras, perfume discreto. Sentei, comi quieta, respondendo o que perguntavam, e fiquei olhando os dois ali, vivendo a vidinha deles, como se nada tivesse acontecido entre as famílias. Eu só tentando parecer educada sem quebrar nada ou sujar a toalha de mesa.

Meu tio tirou o olho do celular um segundo e entrou na conversa quando viu que a Kátia já tava sem assunto.

— E aí, Julinha, fiquei sabendo que você passou pra uma excelente faculdade. É verdade?

— Sim, tio. Agora é “doutora Júlia”, tá?

— Primeiro tem que se formar, jovem. O caminho é longo — ele falou, sem muita cerimônia.

— Vai me chamando de doutora desde já pra ir acostumando, tio — segura esse deboche, seu rico besta.

Eles riram. Eu sou abusada mesmo, fazer o quê.

— Sua mãe me contou o que você está fazendo e eu achei ótimo, querida. Fiquei muito sentida com o seu gesto, sabia? — disse a tia Kátia.

Ela me olhava com uma admiração que me deixava desconfortável. Esquisito, porque quando eu já era maior, ela não tava tão presente assim.

— Eu não sou criança mais. Tenho que ajudar em casa, né?

Eles concordaram. Ela passou geleia numa torrada daquelas que tem gosto de vento e me entregou.

— E, Julinha, quando você estiver no meio da faculdade, você me procura. Vai estagiar comigo, tá? Isso é uma ordem. Ouviu?

— Aí sim. Vim pra um trabalho de babá e já saio com estágio? — eu ri. Fiquei feliz de verdade, mesmo achando que amanhã ele nem ia lembrar — obrigada, tio. Eu quero muito.

Meu tio trabalha com administração hospitalar. Coisa grande. Dá pra entender de onde vem o dinheiro pra manter aquela vida. Eu fiquei quieta por um instante, mastigando devagar, pensando que, se ele realmente lembrasse, aquilo podia mudar muita coisa pra mim.

Veio ele, o pequeno diabo, cria do cramulhão: Thomás. Pros íntimos, não riam, “Tomtom”. Nome de cachorro, mas ele atende feliz. Bonito, não nego: o rosto quadrado do pai, alto para a idade, uns três ou quatro anos mais novo que eu. E lerdo de dar dó. Eu já tinha visto o menino antes, só que a memória não ajudava.

— Filho, essa é a Julinha, vai ficar com você enquanto a gente viaja, tá?

Ele nem levantou o olho.

— Pô, mãe, sério que vai me deixar com uma babá? — pegou um suco, lembrou da educação e, por fim, me encarou — e aí, Julinha.

Ali eu já vi a novela vindo.

— Oi, Tomtom — respirei fundo pra não rir.

Ela tomou a frente, prática como sempre:

— Julinha, o que a gente precisa é de alguém para coordenar a casa. Os empregados vão estar com horário reduzido porque demos folga. A agenda está na bancada, você confere quem veio e se o serviço foi feito. Coisa simples. Dá conta?

— Dou sim, tia — “mandar” é meu hobby.

— Sobre ele, lembra as horas de comer, porque ele esquece da vida. E nada de amigos aqui enquanto estivermos fora.

— Como se eu tivesse amigos — resmungou o menino, sem graça.

— Enfim — ela concluiu — o Rubens vai te levar ao escritório pra assinar seu contrato. Deixei um cartão com dinheiro para as despesas da casa e as suas. Quando voltarem, a gente sobe e eu te mostro o seu quarto.

Eu me assustei com a organização deles. O negócio era muito mais sério do que eu estava acostumada. Tinha contrato com descrição de tarefas, obrigações e deveres. O pagamento era até maior do que o combinado e ainda tinha bônus. O tio Rubens fez tudo certinho, dentro da lei. Raro ver isso. Eu passei o olho no papel, sem entender quase nada, e assinei mesmo assim.

Ele me entregou dois cartões: um da casa, pra emergências, e outro pessoal, pra eu usar se precisasse. A única regra era que eu não podia sair de lá sem deixar alguém da lista no meu lugar.

Depois subi com minha tia Kátia pra ver o quarto. Quando entrei, só consegui pensar na Mariana ali comigo. O lugar era lindo. Enorme. A cama tão alta que batia no meu umbigo. O banheiro, pasmem, tinha uma banheira gigante. Fiquei fascinada. Poderia morar ali fácil.

— E aí, Julinha, gostou do quarto? — perguntou minha tia.

— Porra, tia! Ficar aqui nesse conforto, comendo de graça e ainda sendo paga? Bom demais! Caralhow!

— Olha a boca, menina. Não quero ninguém te ouvindo falar assim aqui, tá?

— Desculpaaaaaaaaa! — falei, rindo e me jogando na cama que parecia uma nuvem.

Eu tinha chegado muito cedo lá e passei o dia com eles, aprendendo a rotina da casa e anotando tudo. Nem parecia que iam viajar pra fora do país. Estavam todos extremamente calmos, tudo cronometrado, mala pronta, documento separado. Se fosse comigo, eu tava arrancando os cabelos da boceta de nervoso.

O Tomtom quase não apareceu. Quando cruzava comigo no corredor dava um sorrisinho torto e virava a cara. Não sei se medo, ranço, ou só timidez mesmo. Na hora da despedida ele surgiu do nada, abraçou os pais, fez pose de independente. Minha tia Kátia perguntou se eu queria que ela trouxesse algo. Disse que ia comprar uns cremes pra mim. Eu queria era um iPhone, mas faltou coragem de pedir.

Mal eles passaram do portão, subi voando pra encher a banheira. Mandei foto pra Mariana. Ela respondeu com um joinha xoxo. Escrevi “para com isso, vem pra cá ficar comigo”, e ela: “não posso, minha mãe não vai deixar, vai atrapalhar seu serviço”.

Enfim.

Preparei o banho, tirei as roupas e me enrolei na toalha, joguei os sais depois de ler a embalagem, nunca tinha feito isso na vida. Fechei a porta do quarto, mão ainda no trinco, quando o carente resolveu dar as caras me chamando.

Ficou claro que ele era carente e chatinho assim que abriu a boca. Ele tinha voz lenta, falava arrastado com medo de me olhar, parecia ter problema o garoto!

— Julinha?

— Oi, Tomtom. Quer alguma coisa? — abri a porta ainda de toalha para o banho.

— Tudo bem? — perguntou, encolhido no batente.

— Tudo. O que foi?

— Queria saber o que você tá fazendo só…

— Ia tomar banho… por quê? — lembrei que eu era a babá. — Já tomou o seu?

— Não… depois eu tomo… — disse ele olhando pro chão encarpetado como se tivesse perdido algo ali.

Suspirei. — Então vai agora. Depois faço janta. Gosta de macarrão?

— Hm… não muito. A gente pode pedir pizza? — olhou pro chão, quase pedindo desculpa.

Na minha cabeça: pedir pizza lá em casa é evento astronômico. Quando alguém diz que vai pedir, a gente já fica logo de olho no portão de olha na polícia, por que a pessoa só pode ter roubado um banco para gastar dinheiro fácil assim.

— Pode. Você pede.

Fechei a porta. Três batidinhas.

— Qual sabor?

— Quatro queijos ou frango com catupiry. — Soltei tentando fechar a porta.

— Tá. E você quer borda? — insistiu.

— Qualquer uma, Tomtom.

— E o Wi-Fi? Eu posso te passar.

— Já tenho, sua mãe me passou.

— Ah, tá. E… você prefere Coca normal ou zero?

— Zero. Agora vai, Tomtom.

— Tá bom. Desculpa.

Fechei de novo. Silêncio. Outra batidinha.

— Só pra confirmar… qual cartão eu uso?

— O da bancada da cozinha.

— Tá. Valeu… é que eu fico meio preocupado com meus pais andando de avião, eu morro de medo.

Aí fudeu. Meu coração doeu. Tinham me dito que ele quis ficar só pra jogar com os amigos.

— Tomtom, por que você não foi com seus pais afinal? — perguntei.

— Porque eu morro de medo de avião — respondeu firme, pela primeira vez.

— E eles sabem disso? Me falaram que você ficou pra jogar. — abri a porta, encostei ali de toalha, esperando a resposta. O olhar dele desceu do carpete pros meus peitos. — Me explica isso direito e olha pra mim, vai.

Ele engasgou com o próprio ar e riu, sem graça.

— Eu falei que queria jogar mesmo. Meu pai me enche o saco quando eu falo que tenho medo de alguma coisa.

Fiquei olhando pra ele. Coitado. Os pais nem devem ter tempo pra esse menino, nem conhecem o filho que têm. Por isso é todo estragado assim. Mas é safado também, porque já tava olhando pra onde não devia.