Capítulo 5
No dia seguinte, que foi sábado, acordei por volta das onze. A casa estava vazia. Meus pais tinham deixado um bilhete dizendo que tentaram me chamar e eu não acordei; eles foram para a casa da serra.
Fiquei sozinha.
A cozinha estava em ordem com um cheiro de café e pão ainda pairando no ar. Escovei os dentes, belisquei o que sobrou do café da manhã e me sentei na bancada com o celular.
Chegaram duas mensagens.
“Pensa com calma, não faz besteira, qualquer coisa me liga.” — Lud.
“Senhora burguesa safada dona Fernanda, informo que hoje, depois do meio-dia, eu e meus camaradas estaremos organizando uma revolução do proletariado e vamos invadir seu latifúndio para coletivizar a sua piscina.” — Gio.
Na faculdade me chamavam de burguesa safada porque basicamente eu tinha um carro. A Gio sustentava a persona de comunista e me provocava com isso o tempo todo. Liguei para os meus pais avisando que a galera iria para a piscina; eles concordaram, contanto que ninguém mexesse no bar do meu pai. Respondi à Gio confirmando. Eram onze e meia, e eu nem lembrava onde estavam meus biquínis.
Subi para o quarto. Abri a gaveta e vi aquele ninho de gato todo embolado, as cores misturadas. Tirei o short, depois a calcinha, e mantive o absorvente íntimo para poder experimentar os bikinis sem risco de sujeira. Experimentei o biquíni vermelho primeiro: amarrei na nuca, ajustei as laterais e encarei o espelho. Tirei. Provei o verde, que assentou melhor no quadril. Depois vesti o preto, mais cavado, que alongava a perna e afinava a cintura. A cada amarração, refiz alças, acertei barras, seria esse mesmo.
Separei uma saída de praia leve, prendi o cabelo e passei protetor nos ombros e nos ossinhos acima do peito, se eu quisesse tomar sol ou entrar na piscina eu teria que tirar o absorvente e trocar por um interno. Lembrei que a piscina podia estar suja e me deu um frio na barriga; eu não recordava do piscineiro ter vindo na semana e já não daria tempo de limpar.
Fui cuidar dos detalhes e, em pouco tempo, o povo começou a chegar: os amigos da sala, a Gio e algumas meninas de outro círculo de amizade dela. Eram gente boa, embora algumas me olhassem como se ter dinheiro fosse motivo de vergonha. Na faculdade eu já estava acostumada com isso.
Acenderam a churrasqueira, encheram os freezers de cerveja e ligaram o som nas caixas ambiente. A piscina não estava perfeita, mas dava para entrar sem drama. Fiz sala, mostrei onde trocar de roupa, apresentei a cozinha externa, organizei o fluxo.
Assim que vi a chance, agarrei a Gio pelo braço e puxei pro canto, meio escondidas atrás de uma coluna, rindo e olhando pros lados como duas cúmplices prestes a aprontar.
— Onde tu te meteste ontem, maluca? — perguntei, semicerrando os olhos, curiosa.
Ela abriu aquele sorriso de quem tem fofoca fresca e deliciosa pra contar.
— Ontem, no evento, um carinha me chamou pra sair. Lindo. Eu larguei tudo e fui com ele — fez uma pausa dramática, levantando uma sobrancelha — eu não tô conseguindo nem sentar, mulher!
Eu gargalhei, apoiando a mão na cintura, e ela ria junto, toda orgulhosa da própria desgraça. Quando a empolgação baixou, eu respirei fundo.
— Eu vou te contar uma parada. Mas tu jura que não vai surtar?
— Agora eu fiquei curiosa. Fala logo.
Meu coração batia rápido. Eu precisava que ela aprovasse a ideia, como se a benção dela validasse o absurdo. Gio era minha âncora e minha juíza ao mesmo tempo. Se ela risse da coisa errada, eu desabava.
— Ontem, no evento, uma mulher me chamou pra ser… — balancei a mão no ar, tentando que ela adivinhasse. Quando vi que não vinha, disparei: — Puta!
Gio arregalou os olhos, a boca abrindo num meio sorriso de incredulidade.
— Como assim, puta?
— É isso mesmo. Ela disse que me dava uns dez mil pra eu dar a “primeira vez”.
Por um instante, silêncio. E aí ela começou a rir. Rir de verdade, curvada, chorando de tanto rir.
— Ela acha que tu é virgem, é isso? — disse entre risadas.
— Não, cacete! — respondi, já rindo também. — Ela quer que eu vire puta de verdade, não amadora tipo tu.
Gio endireitou o corpo, limpando o canto do olho, o riso murchando devagar. O olhar dela ficou mais sério, pesando as palavras antes de sair.
— Dez mil… — ela repetiu, lenta. — E tu tá pensando em aceitar?
Eu hesitei. O ar entre nós ficou denso, meio cúmplice, meio perigoso. Ela cruzou os braços, o sorriso sumindo de vez.
E eu estava, sim. Só que eu não podia admitir sem saber exatamente o que passava na cabeça dela. Eu conhecia o caminho pra dobrar a Gio e, maliciosa, soltei a isca.
— Dez mil, Gio… — desenhei a cifra devagar. — É muito dinheiro pra uma pirocada só.
Ela riu sem graça, mordeu o lábio, ficou pensativa. E quando achei que ia falar de mim, mirou nela mesma, claro.
— Que caralho… nem pra ser puta e ganhar dinheiro eu recebo um convite decente. Se fosse comigo, era pra trabalhar em casa de luz vermelha no bucetão de vinte!
Eu ri da indignação. Ser pobre é osso. Eu entendia a reclamação; pra mim, as portas sempre pareciam meio destrancadas. Para ela, pobre e preta, era sempre mais complicado.
— Ué, se tu quiser eu te coloco no job — falei rindo, cutucando o ombro dela.
— Dez mil… — ela repetiu pro vazio, como se lesse no teto.
— Dez mil — confirmei, firme.
Ela fechou a cara, cruzou os braços. A voz veio seca, sem enfeite.
— Mas porra, Fernanda, sério mesmo? Se fosse eu, que tô fudida, beleza. Mas tu não precisa desse dinheiro. Vai te cagar por merda? E depois, como é que tu vai focar essa tua cabeça aí?
Eu segurei o olho dela. O barulho do lugar pareceu baixar um tom.
— Dinheiro é o de menos, Gio. — Fiz um gesto curto, como quem varre migalhas da mesa. — O que eu quero saber é se eu aguento o jogo. E eu tô curiosa. Curiosidade me come por dentro.
— Curiosidade mata, amor — ela disse, inclinando o rosto, mais brava do que carinhosa. — E quem cava a cova é homem com grana.
Um dos meninos apareceu pra xavecar uma de nós duas. Na verdade tentou as duas ao mesmo tempo, sem criatividade nenhuma. A gente ignorou, ele ficou sem graça e sumiu, coitado. O silêncio voltou, mas eu não deixei morrer.
— E o que é que o teu Marx diria sobre se prostituir, hein? — soltei, provocando.
Gio me lançou aquele olhar de militante prestes a subir no palanque. Nem percebeu o meu zero interesse na resposta e já veio armada.
— Ele diria que, via de regra, a prostituição é uma expressão da alienação e da mercantilização sob o capitalismo. O corpo vira mercadoria, assim como a força de trabalho. É um fenômeno social ligado à exploração.
— Mentira que ele falou das putas mesmo? — perguntei, rindo.
— Em vários livros — ela respondeu séria, contando nos dedos. — No Manifesto de 48, no Capital , nos Manuscritos Econômico-Filosóficos de 44… e acho que em A Sagrada Família também tem alguma coisa.
Eu encarei ela, incrédula. Eu mal dava conta dos livros da faculdade, e ela ainda lia essas merdas chatas por prazer.
— Então Marx errou, porque explorada é uma coisa que eu não sou.
Ela deu um risinho torto, aquele que mistura pena e deboche.
— Meu bem, explorada tu é, sim. Rica ou não, ainda é classe trabalhadora. Tu não é burguesa, só é bem-nascida. E se teu corpo tá virando moeda de troca, isso é mercantilização pura. Além do mais, tu é alienada politicamente pra caralho pra estar cogitando essa ideia.
Ela ajeitou o cabelo, respirou e continuou num tom professoral que me fez querer rir.
— Agora, se for pra falar sério, quem explica melhor teu caso é o Nietzsche. Porque o teu problema, minha filha, é tédio e ego. Falta de desafio. Tu se sabota pra sentir perigo e ter a ilusão de potência. Se quiser atualizar o diagnóstico, lê Bauman: modernidade líquida, estímulo imediato, vazio existencial — tudo isso aí bate certinho em quem já tem tudo e mesmo assim quer mais.
Ela deu um gole na cerveja, me olhou com ironia e completou:
— Mas de todos esses, eu ainda prefiro a minha avó. Ela dizia que “mente vazia é oficina do diabo”. E, no teu caso, o diabo tem um triplex nessa sua cabecinha de vento de tanto espaço que tem.

