Capítulo 6
Não dava pra conversar direito ali. Toda hora alguém interrompia, ou a Gio entrava em modo palestrinha comunista. Mesmo assim, eu adorava ouvir. Ela ficava linda explicando aquelas teorias todas, os olhos acesos, a fala firme, o corpo inteiro acompanhando o raciocínio. E sim, me dava tesão — não por mulher, mas por inteligência. A Gio me deixava acesa quando falava com convicção.
— Mulher, vamo lá pro quarto — falei, rindo. — Eu vou colocar um OB e tu me diz o que o Marx falou dos absorventes internos que eu odeio.
Ela riu, achando graça da provocação, e seguimos rindo até o quarto. Entrei no banheiro, comecei a tirar a roupa pra trocar e entrar na piscina. O absorvente ainda tava limpo, então deixei o OB pra lá. Eu odiava aquela merda mesmo.
Do lado de fora, ela ainda discursava sobre revolução, alienação, luta de classes — o pacote completo. Eu gritei do banheiro:
— Gio, foca aqui, volta da União Soviética e me responde uma coisa! — fiz uma pausa, aparecendo na porta já de bikini. — Tu acha que eu devo aceitar?
Ela piscou, sem entender de primeira.
— Cara… tu ainda pergunta?
— Sim. Então? — insisti, cruzando os braços.
Ela soltou uma gargalhada curta, balançando a cabeça.
— Não, mulher! Claro que não, tá maluca? — ela riu, balançando a cabeça. — Tu é chata pra caralho pra escolher homem, e vai chegar lá sem conhecer o cara pra fazer o quê?
Aquilo me irritou porque, pior de tudo, era verdade. Eu sempre fui fresca pra homem.
— Imagina, tu sabe que vai pegar homem com pinto sujo né? Homem velho escroto e nojento? — falou de um jeito querendo me provocar nojo.
— Pinto sujo a gente já pega normalmente — eu devolvi sem piscar fazendo cara de nojo.. — E eu não sou chata assim pra homem, vai te foder.
A gente sentou na beira da cama, rindo e se provocando. Gio, com aquele olhar de quem já tá armando alguma, cruzou as pernas e disse:
— Tá bom, Bruna Surfistinha. Vamos fazer o seguinte: eu vou apontar uma pessoa na festa, quem eu quiser, homem ou mulher, e tu vai dar pra ela.
— Mulher não, porra. Sai pra lá que eu não vou te pegar. — brinquei, levantando as mãos.
Ela fingiu frustração teatral.
— Droga, tu arruinou o meu plano!
Ela era bi e sempre que dava me arrancava um beijo que eu não correspondia, ela foi o ser humano que mais apertou meus peitos e bunda, no comunismo dela, assédio parecia não existir pelo visto.
— Qual é a regra então? — perguntei, já entrando no jogo.
Ela pensou um pouco, mordendo o lábio, o olhar percorrendo o teto como se procurasse o castigo perfeito. Aí disparou:
— Sabe o Guiga?
— Pera. O Guiga careca, meio gordinho, com aquele suor que brilha e sempre tem migalha de coxinha na barba?
— Esse mesmo.
— O que tem ele?
— Dá pra ele. — disse com a maior naturalidade do mundo. — Se tu é essa puta destemida que dá pra qualquer um, então prova. Dá pro Guiga. Se tu fizer isso, eu calo a boca e admito que tu tem tino pra coisa.
Ela se deitou na minha cama, sorrindo de canto, me desafiando com os olhos.
— E aí, Fernanda? — provocou, devagar. — Qual vai ser?
— Xuxu, nem fodendo! — falei rápido, levantando as mãos. — Se ele me der o toco, imagina a vergonha? O curso inteiro sabendo que o gordola do Guiga me dispensou? Nunca mais eu piso na faculdade. Nem fodendo.
A Gio deu um risinho de canto, e o tom dela mudou. A voz baixou, arrastada, quase carinhosa, mas com aquela precisão que só quem conhece a verdade consegue ter.
— Meu bem… — começou, inclinando o corpo pra frente. — Quando que o Guiga, na vida dele, ia jogar essa chance fora? Tu sabe que ele já deve ter batido umas dez punhetas hoje só pensando em ti, né?
Ela fez um gesto indecente com a mão, rindo.
— Inclusive — completou, apontando pro chão — deve tá lá embaixo agora, no seu banheiro, com alguma roupa da tua avó pensando que é tua e fazendo exatamente isso.
Eu explodi numa risada alta, meio enojada, meio sem fôlego.
— Que nojo, Gio! — falei, rindo entre dentes. — Tu é podre!
Ela gargalhou junto, jogada na cama, o som dela misturado ao meu enchendo o quarto. A imagem do Guiga, suado, peludo, trancado no banheiro da minha casa com a calcinha da minha avó, era absurda demais pra não arrancar lágrima de riso.
A gente ria porque ela tinha certeza de que eu jamais faria uma loucura dessas. Mas eu pensava sério. Lá no fundo, a ideia de “não conseguir encarar qualquer um” me dava medo. Como se isso me desclassificasse do jogo antes mesmo de começar.
Ainda no meio da risada, com o corpo quente e o rosto doendo de tanto rir, eu deixei escapar:
— Eu vou dar pro Guiga.
O riso dela morreu no ar. O silêncio pesou rápido.
— Essa porra é séria mesmo? — perguntou, franzindo a testa. — Eu achei que era mais uma das tuas bravatas.
Eu encarei ela firme, o coração martelando, e pela primeira vez naquela conversa, eu mesma senti o peso do que tinha dito.
Eu lembrei que não tava depilada e, sem pensar muito, dei uma conferida rápida ali mesmo — sentei, afastei o biquíni com a ponta dos dedos, só pra ver o estrago. A Gio, claro, percebeu o movimento e veio que nem um bicho curioso.
— Deixa eu ver se tá depilada. — disse, rindo, se inclinando pra cima de mim.
— Sai daqui, sapatão! — empurrei a cabeça dela e deixei o biquíni voltar pro lugar. — Eu tava de chico até ontem, cresceu a porra toda.
Ela fez cara de espanto fingido, a risada presa no canto da boca.
— Mas tu é rica, pô. Tu não faz laser?
— Faço, mas cresce umas penugens ainda.
— Cadê? Deixa eu ver — insistiu, inclinando o pescoço de novo.
— Tu já viu minha boceta, para com isso.
— Eu me esqueci como é, e também não fico reparando — respondeu, fingindo inocência, mas com um sorriso de quem tava adorando o papel.
— Aham, claro. — revirei os olhos, tentando segurar o riso.
A Gio encostou o queixo no joelho, rindo feito quem já sabe que vai apanhar com razão.
— Tu não é puta? Quanto custa a olhadinha? — provocou, enfiando a mão no bolso da bermuda. Tirou de lá uma moeda encardida de vinte e cinco centavos e ergueu com orgulho. — Isso aqui paga uma olhadinha?
Eu, que não valho nada, arranquei a moeda da mão dela com um estalo, levantei devagar, cabeça erguida, puro teatro.
— Paga sim, madame — falei com um falso tom de luxo, puxando o biquíni inteiro até o meio das coxas.
A luz do quarto caiu direto sobre minha pele branca, lisa no geral, mas com uns fiapos teimosos, infantis, sobreviventes heroicos do massacre a laser. Puxei a pele da testa, como quem abre cortina pra espetáculo.
— Aí, ó — falei, rindo. — Lhe agrada madame?
A Gio desabou de rir, batendo na cama, o corpo todo sacudindo. Eu deixei o biquíni voltar pro lugar e me joguei do lado dela, ainda segurando a moeda suada, pensando que talvez aquele fosse o dinheiro mais sujo e mais engraçado que eu já tinha ganho.
Eu tenho essa moeda até hoje. Mandei um numismata limpar, laudar e emoldurar. Fica na parede do meu escritório, discreta, cercada de silêncio caro. É meu troféu mais ordinário e mais valioso: vinte e cinco centavos encardidos que viraram marco zero. De um lado, a menina fresca que calculava tudo; do outro, a mulher que aprendeu a cobrar até pela risada.
Quando eu olho pra moldura, eu sempre volto praquele quarto: a Gio rindo, minha mão puxando o biquíni, a luz fria na pele, a vergonha e o tesão se bicando. A moeda me lembra que eu atravessei. Que eu saí da inocência confortável e entrei no mundo torto onde tudo tem preço, inclusive a história que a gente conta de si mesma.
Às vezes eu paro em frente a ela e penso no outro roteiro. Se eu tivesse dito “não”, se eu tivesse sido a certinha, se eu tivesse apagado o telefone da Lud. A vida teria sido mais reta, claro. Mais limpa. E provavelmente muito mais sem graça. A moeda me devolve o peso e a leveza da escolha: pequena, suja, risível… e, ainda assim, decisiva.
Tem dia que eu chego cansada, jogo a bolsa na cadeira e encosto a testa no vidro da moldura. Sinto o frio na pele e rio sozinha. Porque, no fim, foi com vinte e cinco centavos que eu comprei meu primeiro “sim”. E desde então eu nunca mais parei de vender verdades pela metade pelo dobro do preço.

