Capítulo 01
Minha turma de faculdade era daquelas que conseguiu se manter unida por quase todo o curso, o que é raro. A gente já estava naquela fase final, onde o único desejo comum era terminar logo e se ver livre daquelas aulas intermináveis e dos professores que pareciam querer nos sugar até o último suspiro. Mas, quase no final, algo inesperado sacudiu nossa rotina: uma travesti entrou na nossa turma para cursar algumas disciplinas que faltavam para ela.
Foi como uma pedra jogada num lago calmo. O impacto foi imediato. Tinha o grupo que não ligava, gente que simplesmente não se importava. Tinha os babacas preconceituosos que chegaram a fazer abaixo-assinado para tentar expulsá-la da faculdade, como se a presença dela fosse uma ameaça. Outros só ignoravam, talvez por preguiça de se envolver, ou por preconceito enrustido. E aí tinha eu. Eu, que não conseguia segurar a curiosidade. Eu, que tinha mil perguntas na ponta da língua, me pegava encarando a garota nos corredores, tentando puxar assunto sempre que podia, mas ela era fechada, quase inacessível. Não parecia interessada em amizades ou pequenos papos sobre o clima ou as provas da semana.
Ela era alta, dona de uma presença forte que fazia as pessoas notarem sua chegada mesmo sem querer. Sempre feminina, com roupas que pareciam feitas sob medida para ela, maquiagem impecável e unhas sempre bem feitas. O cabelo, sempre em dia, parecia uma obra de arte em movimento. Eu me perguntava como ela conseguia manter tudo aquilo. Porque, sinceramente, eu já me sentia uma vencedora quando conseguia lavar o cabelo e vestir uma roupa decente para ir para a aula, sem parecer que tinha sido engolida e cuspida por um furacão.
Mas eu sou do time das tramoias, dessas que não valem nada. Quando fiquei sabendo que a próxima avaliação seria um trabalho em duplas, tratei logo de me adiantar. Dei meus pulos, fui até o gabinete da reitoria e cerquei o professor antes que ele anunciasse a atividade em sala, já garantindo que eu e ela seríamos parceiras. Não tinha intenção nenhuma de deixar essa oportunidade passar.
Quando o professor finalmente anunciou o trabalho, eu a vi me lançar um olhar misturado de surpresa e desconfiança. Aqueles olhos escuros, atentos, me estudando como se tentasse decifrar meu jogo. Depois da aula, não demorou para ela me abordar no corredor, os saltos ecoando no chão frio, como uma pequena declaração de força a cada passo.
— Garota, o que foi isso? Como assim ele colocou a gente juntas? — A voz dela era firme, mas sem agressividade, só curiosidade genuína.
Eu me fiz de inocente, abrindo um sorriso meio sem vergonha, como quem não deve nada.
— Ah, eu estava lá na sala da reitoria quando ele comentou sobre o trabalho. Pensei que você talvez não tivesse com quem fazer, já que entrou agora e ainda não conhece muita gente, então me voluntariei. Isso te incomoda?
Menti descaradamente, sem nem piscar. Porque, no fundo, minha curiosidade não era só sobre o trabalho, era bem mais crua e direta. Eu queria era saber onde ela guardava o pinto. Se tinha ou não. Era uma questão que me consumia sem razão aparente, eu sei que eu sou doida.
Ela me olhou por um segundo que pareceu longo demais, os olhos se estreitando um pouco antes de abrir aquele sorriso doce e tranquilo que eu já começava a reconhecer como sua marca registrada.
— Não, não me incomoda. Na verdade, me deixa até feliz pelo carinho. Obrigada, amor, de coração. Fiquei com o coração quentinho agora.
— Então, pega meu número — respondi, já puxando o celular da bolsa — Hoje, lá em casa, pode ser?
— Claro, querida.
— E leva cachaça! — completei, sem nem pensar muito.
Ela riu, uma risada curta, espontânea, que fez o corredor parecer menos cinza por um instante.
— Tá bem, pode deixar.
E eu fui embora pelos corredores feliz da vida por meu truque ter dado certo.
À noite, a coisa fluiu de um jeito surpreendentemente leve. Ela chegou na minha casa linda como sempre, trazendo algumas bolsas com cervejas e aquele jeito elegante que a fazia parecer sempre preparada para uma festa ou uma reunião importante. Nos primeiros goles, a conversa ficou presa nos temas de sempre: faculdade, professores chatos, prazos que pareciam encolher a cada semana. Ela se mantinha reservada, como se dançasse em volta dos assuntos pessoais, sempre esquivando de qualquer coisa que pudesse revelar um pouco mais dela mesma. Mas aí o álcool começou a agir, amolecendo o juízo e soltando as línguas.
— Garota, me fala — ela começou, os olhos um pouco mais brilhantes, a voz saindo mais solta —, eu sei que você fica me olhando na faculdade. Qual é a sua comigo?
Eu congelei por um segundo. Para alguém tão fechada, ela tinha acabado de soltar uma bomba sem aviso, me pegando completamente desprevenida. Senti o calor subir pelo pescoço e tentei disfarçar com uma risada forçada.
— Como assim? Eu nem sabia que você existia até a gente ser colocada no mesmo trabalho — menti, jogando a cabeça para trás para parecer mais casual.
Ela só levantou uma sobrancelha, com aquele olhar que dizia “não me venha com essa”. Deu mais um gole na cerveja antes de retrucar.
— Deixa de ser boba. Você tá curiosa comigo, né? O que você quer me perguntar? — disse, se inclinando para encher os copos mais uma vez, sem desviar os olhos.
— Posso perguntar o que eu quiser? — arrisquei, ainda um pouco desconfiada.
— Claro, desembucha.
Eu fiquei alguns segundos com o copo na mão, girando a cerveja enquanto pensava em como abordar a pergunta sem parecer uma completa babaca.
— Tá… é muito difícil pra você, tipo, como trans, conseguir um namorado? — deixei escapar, sentindo o peso das palavras assim que saíram. Por um momento, ela torceu o rosto, como se eu tivesse tocado num ponto sensível, e eu quase me arrependi de ter aberto a boca.
Ela suspirou, os dedos deslizando devagar pelo vidro gelado do copo, como se procurasse as palavras certas para me responder.
— Olha, namorado, sim. Homem, não. Isso seria fácil de arrumar se eu quisesse — respondeu, com um tom meio enigmático que só aumentou a minha curiosidade.
— Se você quisesse? Como assim? Você não quer? — eu me inclinei para frente, tentando ler as expressões dela, cada músculo do rosto, cada mínimo movimento que pudesse me dar uma pista.
Ela soltou uma risada curta, meio debochada, e se ajeitou no sofá, esticando as pernas com a confiança de quem estava prestes a derrubar uma bomba na minha cabeça.
— Sim, amor. É que a cabecinha fechada de vocês não consegue ver um palmo à frente dos olhos. Eu sou lésbica, meu bem.
Eu pisquei algumas vezes, tentando digerir a informação. Aquilo me pegou de um jeito que eu não esperava. Não era exatamente a resposta que eu tinha imaginado, mas também não sabia o que tinha imaginado, para ser sincera.
— Porra, aí tu me fodeu. Tu é lésbica? Mas… você é trans, cacete! — soltei sem filtro, a surpresa transbordando sem que eu conseguisse segurar.
Ela me lançou um olhar de puro ceticismo, como se eu fosse uma criança que acabou de dizer a coisa mais inocente e ignorante do mundo.
— E o que isso tem a ver, meu bem? — rebateu, a voz carregada de uma paciência que eu não tinha certeza se era genuína ou só uma forma de me dar uma última chance antes de me cortar de vez.
Eu abri a boca para responder, mas as palavras não vieram. Ela me olhava com uma intensidade que me fez sentir pequena, como se meus preconceitos tivessem acabado de se expor na sala, nu e cru, sem maquiagem para disfarçar.
— Tá vendo? — ela continuou, o tom mais duro agora, as palavras cortando o ar entre a gente. — É por isso que eu não me misturo com as pessoas na faculdade. Porque na cabeça de vocês, ser trans e ser lésbica é uma contradição, um paradoxo. Mas não é. Eu sou quem eu sou.
— Tá, Eu não entendo, mas se é para pegar mulher não era melhor ficar como um homem?
Ela respirou fundo
— Então amor, é que eu não sinto que eu nasci homem entende? Eu me sinto uma mulher como você. E eu não gosto de homens. É simples assim.
— Tô chocada! — soltei, sentindo o rosto esquentar na hora.
Ela riu, jogando a cabeça para trás com aquela despreocupação que só o álcool traz. A risada dela era gostosa, espontânea, quase musical, e me fez sentir meio boba, como se eu tivesse acabado de fazer a pergunta mais óbvia do mundo. Provavelmente tinha, pra ela.
— Ai, garota, suas reações são as melhores — disse, ainda secando os olhos com a ponta dos dedos. — Vai, pergunta outra coisa, mas menos complicada dessa vez.
Eu não pensei muito, já soltei a próxima dúvida que me queimava a língua há semanas.
— Tá, você tem pinto?
Ela quase cuspiu a cerveja, engasgando por um segundo antes de cair na gargalhada, dessa vez alta, forte, do tipo que faz o corpo sacudir e a cabeça pender para trás. Derramou um pouco da bebida no tapete, mas nem pareceu notar. Quando conseguiu se recompor, me olhou com os olhos ainda brilhando de tanto rir.
— Claro que sim, amor! Eu não sou operada e, pra ser sincera, nem quero.
— Meu Deus, isso é muito confuso! — eu admiti, jogando as pernas no sofá e me virando para encará-la de frente. — Eu achava que todas vocês queriam cortar fora.