Capítulo 5
A semana passou rápido. Lelê aparecia e sumia como fumaça. Às vezes eu mandava mensagem pra tirar dúvida sobre a casa e ela só respondia no dia seguinte, como se o tempo fosse elástico pra ela. Aquilo começou a me irritar e, no fundo, dei razão aos meus pais quando sugeriram procurar outro lugar.
Mesmo assim, combinamos de nos ver no sábado à tarde. A ideia era eu conhecer a casa e, quem sabe, ficar o fim de semana lá para me ambientar. Mas quando cheguei na cidade e liguei, nada. Nenhuma resposta.
Passamos a manhã rodando, vendo outras repúblicas. Tudo parecia estranho, frio, ou caro demais. No fim, acabamos indo até a casa onde ela morava. O pai dela já tinha falado com o meu e estavam nos esperando.
Eram simpáticos, educados, mas havia um ar contido em tudo que diziam. A mãe, especialmente, parecia desconfortável. Um tipo de preocupação que não era com a filha — era comigo, por eu ir morar ali, mas não que eu fosse o risco, estranho.
Contaram que Lelê estava dormindo quando saíram, tinha chegado tarde de uma festa e não conseguiu acordar. Eu fingi que entendi, mas por dentro algo latejou — um misto de decepção e curiosidade, como se aquela menina fosse um enigma que eu já tinha começado a decifrar e ela, de propósito, tivesse apagado as pistas.
Os três conversavam em perfeita sintonia. Meus pai e os dela concordavam em tudo: valor, regras, prazos. Meu pai, como sempre, precisou deixar tudo claro — sem drogas, sem festas, e, principalmente, sem homens na casa. O pai dela assentiu com um orgulho visível, só faltou exibir o distintivo pra reforçar o discurso de como ele era policial e gostava de tudo correto.
Eu, já impaciente, deixei os adultos acertando o mundo e fui explorar o quarto. Estar ali sem ela era estranho. O cheiro era o dela, forte, doce e meio bagunçado, grudado nas paredes. As roupas espalhadas, livros empilhados, meias esquecidas. Um caos total que seria um problema futuramente.
Abri a porta do armário, lembrando que havia um espelho por dentro. O reflexo me pegou desprevenida — cabelo desalinhado, olhar curioso, um traço de nervosismo. Mas o que chamou atenção foi uma foto colada no canto do espelho: ela, abraçada com outra menina, as duas sorrindo, sol e mar ao fundo.
— Ah… deve ter sido essa aí que fez ela vir pra essa faculdade — murmurei, meio amarga.
O celular vibrou. Chamada de vídeo.
Era ela.
Atendi. Lelê apareceu com o rosto amassado, sentada num ônibus de viagem, limpando a remela com o dorso da mão.
— Porra, meus pais não me acordaram… — reclamou, a voz rouca.
— Eles disseram que foi você que não levantou, filha! — retruquei, sem esconder o tom irritado. — Onde você tá?
— Tô indo praí, chego em duas horas.
— Pera aí. — Coloquei a cabeça pra fora do quarto. — Ela tá vindo, disse que chega em duas horas — avisei.
A mãe dela fez cara de quem não aprovava. O pai só suspirou, resignado.
— E aí, acertaram tudo? — perguntei.
— Acertamos — respondeu meu pai.
— Então… eu vou morar aqui? — perguntei, quase sem acreditar.
— Por mim tá tudo certo — disse o pai dela.
Meu pai confirmou com um aceno. E eu voltei para o telefone.
— Eles acertaram tudo, eu vou morar aqui. Eu te espero? Como a gente faz?
Lelê bocejou, recostando no banco do ônibus.
— Eu vou passar na Nana primeiro.
A conexão falhou por um instante. Fiquei ali, olhando pra tela preta, o coração dividido entre o alívio e a inquietação.
— Na Nana? — a minha pergunta era uma incredulidade, um ciúmes que estava crescendo e eu não tinha direito de ter. Apenas tentei me controlar e respirei fundo.
— É a Nana, minha ex, você não conhece, mas é rápido, só quero pegar minhas coisas. — ela olhou pela janela e voltou para o celular — Não fica com ciúmes não.
— Que ciúmes o que garota tá maluca, eu não tenho nada haver com sua vida. — falei quase mostrando irritação que não queria.
— Vou dormir mais um pouco, vai comer alguma coisa, dar uma volta, quando eu tiver chegando eu ligo, pede pro meu pai a chave dele, depois eu dou uma cópia nova para ele.
Eu desliguei o telefone e fui para a sala, eu não nem queria mais ficar ali, vai que aquela doida muda de ideia de novo?
Voltei pra sala sem ânimo. Meu pai nem percebeu meu humor.
— Filha, vai lá no carro pegar suas coisas, a gente tá finalizando aqui.
— Pois é… eu não sei se quero ficar mais — falei baixo, olhando em volta, meio sem foco. — Tinha combinado de me encontrar com ela, mas agora ela vai passar sei lá onde.
Evitei dizer que o “onde” era na casa da ex. Vai que os pais dela não sabiam. Tirar alguém do armário assim seria uma vacilação enorme.
A mãe dela cruzou os braços, soltando um comentário como quem joga lenha num fogo apagado:
— Querida, você quem sabe, mas olha… eu sou a mãe dela. Minha filha muda de ideia que nem o vento muda de direção. É só um conselho.
Aquilo me travou. A própria mãe queimando a filha, ali, na frente de todo mundo. Vacilo total. Meu pai notou meu incômodo — me lançou um olhar rápido, pesado, como quem diz “não fala nada”.
Fiquei um tempo quieta, pensando. Depois soltei:
— Quer saber? Vou ficar. Assim já me acostumo com a cidade, dou umas voltas, vejo como é.
— Isso, filha. Faz isso. — meu pai respondeu satisfeito, alheio à confusão dentro de mim. — Só não fica zanzando sozinha à noite sem conhecer alguém daqui tá?
Mas a verdade era outra. Eu não queria conhecer a cidade. Queria ver ela. Estava ansiosa, com o corpo impaciente, uma coisa quente e possessiva crescendo em mim. Não era bem um crush. Era outra coisa — mais funda, mais perigosa, e eu já sabia que ia quebrar a cara com aquilo.
Busquei minhas coisas no carro. Meu pai e o pai dela me ajudaram a levar tudo rápido para dentro. Não era muita coisa, mas evitou idas e vindas. Nos despedimos. Fiquei sozinha. Minha casa nova.
Estar ali sem ninguém era esquisito. O silêncio incomodava. Dei uma volta lenta, tocando as bordas do lugar. Abri uma porta, depois outra. Armários da cozinha, do banheiro. A curiosidade cutucando. Um diabinho sussurrou no meu ouvido: “tu tem tempo… vai xeretar”.
— Puta merda, mexer nas coisas da garota é vacilo — cruzei os braços no meio da sala, debatendo comigo mesma. — Mas um pouco de informação não mata ninguém, né?
Senti o coração apertar. A respiração ficou curta. A adrenalina esquentou a pele. Tranquei a porta por dentro e passei o trinco. Mesmo que ela chegasse, só entraria se eu quisesse. Eu não ia ser pega.
Corri pro quarto dela.
Antes de tudo, vasculhei o teto e os cantos como uma paranoica maluca atrás de câmera. Nada. Me ajoelhei diante do armário, mão na primeira porta. Abri.
— Quem esconde, esconde no alto ou no baixo… e ela é baixinha — murmurei, já tateando.
Puxei a última gaveta. Passei os dedos por baixo das roupas, procurando volume. Achei. Um saquinho. Dentro, toys. Um vibrador, um consolo, e um daqueles com wifi que eu sempre quis testar. Camisinhas — provavelmente pra usar com os brinquedos — e um lubrificante que esquenta.
— Por que esconder isso morando sozinha? Hábito? — pensei, divertida.
Na gaveta do meio, calcinhas, sutiãs, biquínis, micro-peças. Bonitas, mas nada digno de nota, eu tinha coisas melhores. Olhei em volta, ouvi o silêncio, subi pra de cima.
A primeira gaveta tinha um maço de dinheiro. Alto pra deixar em casa. Voltei pro lugar sem alarde. O que me fisgou foi outra coisa: uma agenda preta, cara de diário meio escondido entre as roupas. Abri.
— Quem escreve diário hoje em dia? — sorri, já folheando. — A pessoa que reclama que eu não uso chamada de video.
Quase tudo eram desenhos e pensamentos soltos. Às vezes listas de compra. Os traços eram lindos. Nus estilizados. A mesma mulher repetida em poses diferentes. Procurei sem querer a menina da foto colada no espelho… difícil afirmar se era ela a musa. Desci as páginas até chegar nos dias em que a gente se conheceu. E vi.
Parecia comigo.
Era eu.
Uma caricatura feita no impulso, mas com a mão de quem sabe. Meu cabelo, a curva do nariz, a boca tensa que eu faço quando penso demais. Embaixo, escrito à caneta:
“De tudo que eu fiz, o destino é bondoso e me permite recomeçar,
ó deusa, dai-me força para não cagar tudo de novo.”
Fiquei parada com o diário aberto, o quarto respirando em volta. O cheiro dela no ar. O desenho de mim no papel. E, no meio do meu peito, uma vontade absurda de ficar.

