Capítulo 6

Depois de ter encontrado aquilo, guardei tudo de volta e caí na real: era muito errado me intrometer na privacidade dos outros. Quis ficar zangada comigo mesma por isso, mas, na verdade, outra coisa martelava a minha razão.

— Gente, eu tô apaixonada por essa menina! Ahn, não!

Aquilo era novo pra mim. Só tinha ficado ansiosa assim com um namorado que depois se mostrou um ranço de ser humano. E eu ali, sentada na cama, ansiosa para ela chegar.

— Será que ela vai chegar com fome?

Pensei em fazer algo pra ela comer. Eu queria passar o tempo, mas ele se arrastava de sacanagem com a minha cara.

— Violeta, deixa de ser idiota. Você não pode se apaixonar por uma mulher, sua idiota! — eu olhava pro outro lado do cômodo como se falasse com uma pessoa imaginária. — Vai viver vida de casada agora? Vai fazer o quê depois? Adotar um gato?

Tentei me confortar pensando que era só a novidade. Eu estava conhecendo gente nova, fora do meio em que eu vivia, e logo conheceria outras pessoas, novos caras, e tudo isso passaria. Um sorriso confiante brotou no meu rosto e fui buscar artifícios pra me convencer mais.

— Ela não tem pau e você ama pau. Veiudo, rosado, cabeção… — na hora veio a imagem de um pau muito específico que vivia na minha imaginação. — Viu só? E cheiro de macho suado… tu gosta, sua safada!

Eu ria sozinha, parecendo doida, quando o telefone tocou.

— Aí, deu ruim aqui com a Nana. — A frase me sorrir instantaneamente — Nem vou lá mais. Tu tá em casa?

— Tô, sim. Você tá com fome? — Eu descobri que estava nesse exato momento.

— Nossa, você leu minha mente. Vou só largar minhas coisas aí e vamos ali no pão de alho?

— Pão de alho?

— É, pô. Um carinha que vende um pão de alho com linguiça. Bom demais.

Ela desligou e eu corri pro banheiro pra ver minha fuça. Dei um jeitinho no cabelo, passei um batom, arrumei o sutiã que tava meio torto, vi se a calcinha não tava aparecendo por cima do jeans e fui pra sala. Ela já estava virando a maçaneta.

Corri para destravar o trinco e ela entrou.

Eu congelei por um segundo, tentando disfarçar a alegria e a surpresa, quando vi um detalhe: ela tinha um braço inteiro tatuado. Mas da última vez que eu a vi não tinha nada ali.

Ela entrou pela porta tropeçando em três bolsas enormes. Pequena, tentando equilibrar o peso do mundo nos ombros. A cada passo uma bolsa despencava, e ela ria sem fôlego, o rosto vermelho de esforço.

— Caramba, eu sou muito burra, cara — bufou, parando no meio da sala. — Cismei de trazer tudo de uma vez e esqueci que tinha que subir e descer com esse monte de tralha.

Ajudei a tirar as mochilas do caminho. Quando virei, ela veio direto me abraçar. Um abraço estranho, apertado, quase infantil. A cabeça dela encostou no meu peito, sem malícia, mas ficou ali por segundos, como se quisesse ouvir meu coração.

O cheiro dela me pegou. Não era perfume doce nem floral. Era um cheiro morno, quase de menino, mistura de tecido úmido e estrada. Usava um vestidinho azul-turquesa curto, botas pequenas e um casaquinho de crochê. A cidade era fria, o ônibus mais ainda, e aquele contraste de roupa leve com lã me deu vontade de rir.

Os cabelos, como sempre, um caos: presos de qualquer jeito, oleosos, com as pontas manchadas. Olhei aquilo e soltei sem pensar:

— Lelê, a primeira coisa que a gente vai fazer amanhã é dar um trato nesse cabelo, hein?

Ela riu.

— Meu cabelo tá um lixo. Passei um monte de porcaria nas férias. Tô até com medo de lavar, tá caindo muito por causa da química.

Enquanto ela falava, examinava as pontas, e eu reparei nas marcas no braço. Não eram tatuagens — eram desenhos. Canetinha, tinta ou algo assim. Flores, linhas curvas, tudo se entrelaçando num padrão que parecia respirar.

— Nossa, que lindo isso! Quem fez?

— Eu mesma.

— Devia tatuar, ia ficar incrível.

— Eu não gosto da ideia. Eu enjoo rápido. Assim posso trocar sempre que quiser — ela olhou pro cotovelo, onde o desenho tinha borrado. — Tu acredita que eu faço isso desde o colégio? Até hoje tem gente que me procura pra eu pintar nelas.

— Sério? — ri, balançando a cabeça. — Se a faculdade der errado, já tem o teu artesanato garantido.

Ela sorriu. E eu percebi que, de perto, o sorriso dela era ainda mais bonito do que no reflexo que ficou na minha cabeça a semana inteira.

— Vamos comer logo, eu tô morrendo de fome — ela disse.

Saímos e pegamos um Uber de cinco minutos até um bequinho. Eu torci o nariz esperando o pior. Era um corredor comprido, nada bonito, uns quadros nas paredes e só. De repente, se abriu num salão amplo. Modesto, mas bonito.

Com a universidade fechada nas férias do começo do ano, a cidade ficava vazia. No restaurante, isso aparecia: só um casal numa mesa ao fundo e um grupo pequeno de amigos grudado no celular em uma outra mesa comendo sem conversar.

Sentamos e pedimos o famoso pão de alho com linguiça. Nunca me chamou atenção, mas surpreendeu. Tudo era artesanal, disse o garçom: eles mesmos faziam o pão, o molho e a charcutaria. Com a cerveja gelada, eu já estava no segundo pão quando o assunto saiu do ameno e foi ficando íntimo.

— Mas, Violeta, tu falou que já beijou mulher, certo? — ela fez uma pausa, tateando o terreno. — Mas chegou a namorar?

— Não. Nunca senti atração o bastante pra namorar mulher — respondi no automático, distraída com o molho escorrendo do sanduíche.

— Eee…? — ela segurou meu olhar e deu uma balançadinha de língua no ar, discreta, que me fez rir. — E uma chupadinha?

— Nem cheguei perto disso. Só com homem.

— Esquisito… — eu recebi uma expressão analítica forte.

— Esquisito por quê? — retruquei, meio na defensiva.

— É que eu achei que tu era bi. Pelo menos.

Fiquei olhando pra ela sem saber o que dizer. Na verdade, eu não sabia mesmo. Sentir atração e ter desejo eram coisas diferentes pra mim, e essa diferença me confundia. Eu nunca saberia o que fazer com um par de tetas.

— Eu tenho curiosidade — admiti, deixando a porta entreaberta.

— Ih, hétera curiosa é chave de cadeia, cara.

— Na verdade, Lelê, é um pouco mais que curiosidade. É que eu nunca tive uma oportunidade real de ficar com mulher, sabe?

Ela parou de mastigar. Largou o resto do sanduíche no prato. Eu já estava no segundo, e ela ainda penava no primeiro — e o troço nem era grande. Se recostou na cadeira, limpou a boca devagar, e me olhou com cara de quem vai aprontar.

— Vou te fazer uma pergunta, e tu responde rápido, sem pensar.

Ri antes mesmo de ouvir. Eu sabia que vinha bomba.

— O garçom chega, traz um bucetão bonito e coloca no teu prato. Tu chupa ou manda de volta pra cozinha?

Me engasguei. Vermelha, tossindo e rindo ao mesmo tempo. A cena era ridícula. Quem olhasse pra ela — pequena, com aquele jeitinho infantil e vestido azul de boneca — nunca imaginaria uma frase dessas saindo daquela boca .

Tentei me recompor, ainda rindo.

— Se for um bucetão bonito… — falei imaginando na dúvida se eu gostava de verdade ou não.

— Tu chupava? — ela insistiu, séria.

— Acho que sim…

— Acha não, pô. É sim ou não.

— Tá, sim. Sim. — respondi, e ela abriu aquele sorriso travesso que me desmontava inteira.

Lelê levantou o braço, estalou os dedos no ar e mirou o garçom com um assovio.

— Champs! Traz dois bucetão pra gente! — gritou, com toda a confiança do mundo.

Meus olhos quase saltaram. O salão inteiro virou pra olhar. O garçom deu um sorriso torto e sumiu na cozinha. Eu queria desaparecer junto.

— Que isso, Lelê?! — sussurrei, enfiando o rosto nas mãos.

— Calma, tu vai ver… quero ver se tu cai de boca mesmo no bucetão — disse, encenando com a mão, o gesto indecente completando a cena.

— Meu Deus… — falei entre o riso e a vergonha. — Tu tá falando de sobremesa, né?

— Claro, ué! Tu achou que eu tava falando de quê? — respondeu, rindo tanto que quase derrubou o copo.

Torci a cara, mas ela ria com tanta malícia que era impossível não rir junto.

— Muito engraçada você. Eu falando sério da minha vida e você fazendo piada.

Ela piscou.

— Até parece, Violeta.

Quando o garçom voltou, bastou eu olhar pra entender.

A sobremesa era um desastre acidental: um formato tão… anatômico, que beirava o indecente. Uma base de caramelo, um creme azedo e doce de leite, coberta por chocolate duro demais, com uma bola de sorvete ao lado. O contraste fazia o “bucetão” parecer ainda mais literal.

— Eu vou fazer o bucetão do Beco da Linguiça ficar famoso no mundo, tu vai ver — disse ela, quebrando a casca de chocolate com a colher e enchendo uma boa colherada.

Eu já ria tanto que nem consegui responder.