Capítulo 14
O dia depois disso foi estranho. Junior ficou no computador o tempo inteiro, com os fones enfiados na orelha, rindo com os amigos num jogo novo, como se nada tivesse acontecido. Ele não tocou mais no assunto, e eu também não. Só que o silêncio pesava, mais do que qualquer briga. A casa estava limpa, organizada… e pela primeira vez eu desejei que estivesse uma zona. Só pra ter algo pra limpar, algo pra fazer com as mãos, com o corpo — qualquer coisa que desviasse o pensamento.
Desci. Tinha uma feirinha de artesanato na praça em frente de casa. Todo domingo. Nunca liguei muito, mas naquele dia, andar no meio de panos estampados, crochês e cheiro de incenso era melhor do que ficar encarando as paredes. Só que a ideia não saía da minha cabeça. Martelava, latejava, roía. Peguei o telefone no bolso da calça e disquei sem pensar.
— Manu.
— E aí, chefa. Quero saber: brigaram feio?
— Então… não. E foi isso que me deixou desconcertada.
— Ué. Como assim?
— Ele disse que gostou da ideia, ficou com tesão, se masturbou e ainda por cima gozou.
— Que ideia?
— Da ideia de ser corno.
— Hahahahaha! Ah, não! — a gargalhada dela veio alta, quase ofendida de tão genuína. — Tu tá de sacanagem. Agora, depois de terminar, você descobre que o cara é corno por fetiche? Se fodeu, né miga!
— Tô falando sério, Manu. Tô muito confusa. Não sei o que fazer com isso.
— Ué, chama um negão e bota ele pra ver! Resolve rapidinho.
— Idiota… — falei rindo, mas a risada escapou meio suja. Tinha gostado da ideia. Tinha doído em algum lugar bom.
— Tô falando sério agora. Cê quer mesmo saber o que eu acho?
— Quero.
— Se você tá me ligando pra isso, é porque gostou. Qualquer outra mulher já teria seguido o plano de sumir, ter um papo definitivo, cortar contato. Mas você tá aí, cheia de dúvida e com fogo na cabeça. Você quer que ele veja, né?
Fiquei em silêncio. A respiração presa na garganta. Uma mulher mexia em bijuteria do meu lado e o barulho dos metais batendo soava alto demais.
— Não sei, Manu… É que eu nunca pensei nessas coisas. Nunca imaginei que ia me pegar pensando nisso com alguém que foi meu. Me parece maluquice.
— Então deixa eu reformular: se é maluquice, por que você tá excitada?
Engoli seco. O céu tava limpo, o dia bonito. E eu ali, com o celular colado no ouvido e as pernas formigando.
— Quem te falou que eu tou excitada?
— Sério, nem um pouco? Se eu dedar essa buceta aí agora, vou achar areia?
— Tá, um pouco, mas sei lá, será por que eu sou doente, talvez?
— Não, amiga. Porque você gostou da ideia dele ter tocado uma com a informação que você deu. Simples assim.
E isso, de algum jeito, me desmontou.
— Manu, isso é muito errado, eu sinceramente não sei…
— Errado por quê? — ela rebateu na hora, com aquela voz debochada que sempre esconde coisa séria por trás. — Errado é você querer sumir no mapa com essa ideia latejando na xoxota e fingir que é moral.
— Se você quiser… eu chamo o carinha de novo. Topa?
— Tá maluca? Ele vai pensar o quê de mim?
— Pensar nada. Vai ter certeza. Que tu curte. Que tu goza de verdade. Que tu já fez um com ele, então por que não um segundo round? O cara não é idiota, mas também não vai reclamar da sorte.
— Nossa, pior que… eu super pegaria ele de novo… — Eu gozei umas cinco vezes…
— Cinco? — Manu gargalhou como quem sabe um segredo sujo. — Tu não sabe contar mesmo, né?
— Foi mais que isso?
— Amiga, eu perdi as contas. Sério. Você caiu pro lado igual boneca de pano, desmaiada, a boca aberta, as pernas bambas… Dormiu no meio de uma poça de porra, toda melada, fedendo gozo e orgulho. Tu ronronava igual gata parida.
Fiquei muda. A cena voltou em flashes. A textura. O gosto. O cansaço nos ossos.
— Tá explicado por que eu acordei fedendo daquele jeito.
— E o melhor… — Manu continuou, com a voz carregada de satisfação — o cara ficou maravilhado contigo. Falou que nunca tinha visto mulher gozar daquele jeito. Tá se achando um deus. Aposto que já contou pra uns três amigos que fez a ex de alguém gemer que nem atriz de filme pornô.
— Puta merda… — sussurrei, sentindo o rosto esquentar.
E lá estava de novo: a mistura insuportável de vergonha e vontade. Aquela coisa torta que subia do estômago e se alojava entre as pernas.
E que, pra piorar, não passava.
— Olha, ele quer seu telefone. Posso dar?
— Acho que sim, né?
Eu não queria
— Vou passar pra ele… Mas, se quiser, eu combino com ele. Só tu resolver aí do seu lado.
— Cara, tu não vale nada, Manu.
E desliguei o telefone.
Voltei minha atenção para as barraquinhas. O cheiro de pastel me acertou em cheio — aquele misto de gordura velha e desejo infantil por alguma coisa quente e crocante. Comer era a desculpa perfeita pra não pensar. Pedi um de queijo e um copo gelado de caldo de cana, tirado na hora. Encostei na barraca, mastigando devagar, vendo o mundo girar num ritmo que não era meu.
Enquanto mordia a ponta do pastel, com o queijo queimando o céu da boca, o celular vibrou. Peguei na hora, coração acelerado.
— Mas já? — murmurei, olhando pro visor. — Meu Deus… Manu é rápida.
O número era estranho, não tinha nome salvo, mas alguma coisa no estômago apertou diferente. Atendi com o guardanapo ainda entre os dedos.
— Alô.
— Oi. Desculpa ligar assim… é que a Manu me passou teu número agora há pouco. Eu insisti.
— Ah… claro. Imagina. Tudo bem sim.
— Eu só liguei pra dizer que… eu achei tudo ótimo. E… fiquei um pouco preocupado depois.
A voz dele era mais baixa do que eu lembrava. Ou talvez fosse só o contraste com o caos da noite anterior. De qualquer forma, o jeito como ele falou “preocupado” me fez morder o pastel com mais força, como se aquilo segurasse alguma coisa por dentro.
— Eu também gostei. Obrigada por ter ligado. Eu nunca tinha feito aquilo antes. Fiquei com um pouco de vergonha depois. Nossa, que vergonha!
— Se serve de consolo… eu também nunca tinha feito. Realizei o sonho de todo homem! Ainda mais com duas mulheres maravilhosas como vocês duas.
— Bobo… — soltei, rindo leve. — Mas ficou preocupado com o quê? Comigo?
— Sim. Essa coisa de vídeo, foto… fiquei receoso. Não quero ser paranoico, mas…
Ele tinha razão. A gente gravou sem pensar, no impulso, no calor. Ele só seguiu. Só obedeceu. Não pediu. Não negociou. Era óbvio que o peso agora tava batendo nele.
— Não, fica tranquilo. Ninguém vai ver isso.
— Mas vocês mandaram pra quem? Eu sei que é chato perguntar, mas… eu tenho família, carreira… entende?
— Nós também. E ainda somos mulheres. E eu sei que foi uma merda ter mandado. Me desculpa.
E sobre sua pergunta… eu mandei pro meu ex-marido.
— Caramba… você é má! Então foi uma vingança?
— Sim… e não. É difícil explicar sem dar detalhe demais.
— Entendi. Quer almoçar? Aí você me conta.
— Tô sem fome. Tô comendo um pastel na feira da pracinha…Consigo nem pensar em comida de verdade.
— Tudo bem. Fica pra próxima. Mas… me perdoa insistir: o que o teu ex fez pra merecer isso?
— Na verdade? Nada. Ele meio que… pediu.
— Ahhh, tá explicado. Ele gosta de ser corno. Saquei! Legal… vocês têm uma parada liberal.
— Não. Esse é o problema. A gente não tem. Nunca teve. Isso só… apareceu… e aconteceu.
A conversa estava começando a escapar do controle emocional que eu fingia ter. Olhei ao redor, as vozes, os guardanapos voando com o vento, gente rindo alto. Pedi um segundo para ele. Fiz sinal pra mulher da barraca, paguei rápido, agradeci com um sorriso automático e caminhei até um canto mais afastado, perto de umas árvores, onde pessoas curiosas não poderiam me ouvir.
— Desculpa. Eu tava numa barraca de pastel, cheia de gente em volta. Pode falar agora.
— Não, eu não ia dizer nada demais…
— Ah não? — perguntei, ainda com a voz meio embargada pelo calor do pastel e da confusão.
— É que… eu curto essa ideia mais liberal. Se quiser fazer de novo… se ele quiser ver… eu não me importo.
— Isso era o “nada demais” que você ia dizer? — Perguntei curiosa.
Do outro lado da linha, ele riu. Aquele riso de quem sabe que falou demais e não se arrepende nem um pouco.
— Não quero ser chato, tá bem? Só tô dizendo que… se precisar, eu tô disponível.
— Claro que tá, malandrão.
— Mas eu sei que você gostou. Se não gostou, fingiu muito bem.
— Deixa de ser convencido!
— A gente pode se ver essa semana?
Parei no meio do passo, olhei pro céu por instinto, como se alguma nuvem fosse me entregar a resposta certa.
— Deixa eu ver minha rotina na segunda e te falo. Não tô te dando um fora, não. É que minha semana normalmente é uma bagunça. Mais fácil a Manu saber da minha agenda do que eu.
— Então vou ligar pra ela agora pra marcar hora.
Soltei uma risada de verdade, daquelas que a gente não segura nem se quiser.
— Não, não precisa. Espera passar a segunda.
Dei uma pausa. O vento bateu nas costas. A voz ficou mais baixa.
— E… outra coisa. Eu tô saindo de um relacionamento. E as coisas… ainda estão meio embaralhadas. Espero que você entenda.
— Eu posso entender isso, sim. Fica tranquila. Eu não vou te pressionar, tá?
Do outro lado da linha, ele fez uma pausa.
— Só um pouquinho!
— Tá certo. Só um pouquinho pode.
E desliguei com o sorriso preso nos lábios e um gosto doce de caldo de cana misturado com alguma coisa que eu não sabia se era leveza ou perigo.