Capítulo 14
Quando a Juju saiu do banheiro, eu entrei me esbarrando nela, sem conseguir esconder a pressa. Eu estava apertada demais, o corpo ainda quente, molhado, sensível. Ela me olhou com um riso curto, quase sem graça, e seguiu direto pro quarto. Eu deixei a porta do banheiro aberta, como quem quer mostrar que tá tudo bem, como se eu não tivesse acabado de transar com a minha própria irmã. Mas não tava tudo bem. Nada estava.
Me sentei no vaso, tentando controlar a respiração, ajeitei o cabelo com os dedos trêmulos, e soltei a pergunta no ar.
— Irmã… como ficou o vídeo?
Um silêncio breve. Depois, o som dos passos leves no corredor. Ela apareceu de novo, enfiando só a cabeça no batente da porta com a cara de quem queria medir minha reação.
— Eu vi rápido só… mas não ficou bom.
— Não dá pra usar? Sei lá, pelo menos uns trechos?
— Não sei. Talvez. Eu tava pensando em mostrar pra Patrícia… o que você acha?
Meu corpo gelou. A ideia de alguém vendo aquilo, vendo aquilo, me atravessou como um susto. Levei a mão à testa, abafando a voz.
— Meu Deus… isso me mata de vergonha.
Ela revirou os olhos e cruzou os braços, do jeito impaciente de sempre.
— Ju… pelo amor de Deus, né? Tá ficando chata. Eu sei que é esquisito, você sabe que é esquisito, mas se ficar repetindo isso o tempo todo vira um inferno. Já deu. Para.
Ela ficou me olhando séria, como quem dizia sem dizer: ou a gente lida com isso, ou desiste de tudo. Eu respirei fundo, o corpo ainda meio trêmulo, e soltei, tentando parecer natural.
— Verdade… — fiz uma pausa curta. — Hoje você faz sozinha? Eu vou ver o papai.
Mentira. Eu não precisava ir ver meu pai, nem era dia de visita, mas eu precisava fugir dela. Me afastar um pouco. Eu estava com tesão na minha irmã, e isso não dava pra esconder. E conhecendo a Juju, ela ia passar o resto do dia agressiva, alfinetando, jogando indireta, até ela mesma entender o que estava sentindo. E eu? Ia ficar levando patada o dia inteiro, fingindo que tava tudo bem.
— E outra coisa… aquele Vitorino? Você tá falando com ele? Vi agora aqui denovo e tem umas cinco mensagens dele pra você. Acha que o idiota sabe diferenciar nós duas?
— Não deve saber, irmã — eu respondi sem nem olhar. — Só deve estar falando meu nome porque eu tava sozinha na live.
Ela saiu do banheiro com o olho grudado no celular, o rosto molhado ainda, o cabelo colado na testa. E do nada, ficou muda. Me ignorou completamente. Virou as costas e foi embora. Simples assim.
Fiquei parada ali por uns segundos, depois tomei um banho rápido, só pra tentar apagar o cheiro dela do meu corpo. Fui pro quarto enrolada na toalha, peguei uma roupa qualquer e comecei a me trocar devagar, sem vontade. Enquanto me vestia, pensava no que eu ia fazer na rua. Falar que ia ver meu pai foi impulso. Era mentira. Eu nem podia ir no hospital, ia chegar depois do horário de visitas. E se a mulher da administração me visse lá, ia me cobrar a conta. De novo. Se ela dissesse que a dívida tinha aumentado, eu acho que surtava ali mesmo no corredor.
Era sempre assim. Juju queria investir, e eu ficava com o peso das contas. Ela sonhava com câmera nova, com fundo de LED e microfone de estúdio. Eu pensava em parcelamento de hospital, em boleto atrasado, em ligação de cobrança. A verdade é que mesmo com pouco tempo de projeto, a coisa já tava rendendo uns trocados. Nada absurdo, mas dava pra ver que ia crescer. Quando a gente começasse a gravar vídeo, mandar pack, fazer conteúdo mesmo, ia melhorar. Só que… a gente não sabia fazer. A gente não tinha técnica, nem direção, nem confiança.
A ideia de ter alguém de fora ajudando era algo que me incomodava. A Patrícia entendia do assunto, isso eu não podia negar. Já fazia OnlyFans há tempo, já tinha estrutura, já tinha gente pagando por ela. Mas eu não ia com a cara dela. E não era por ela ser GP, se é que era mesmo. Era outra coisa. Era a sensação de estar sendo agenciada. Eu não sabia explicar. Só sabia que me dava um incômodo fundo, um desconforto que ficava ali, grudado, mesmo quando tudo parecia estar indo bem.
Já vestida, peguei meu telefone e saí do quarto. Juliette começou a tagarelar alguma coisa sobre as ideias que teve pro nosso “trabalho”, mas dessa vez fui eu quem ignorou. Fingir que não ouvi era mais fácil do que continuar aquela dança estranha de proximidade e silêncio. Chamei um Uber pro shopping, desci as escadas devagar e saí pelo portão com a desculpa pronta na cabeça: ia só ver umas modas, dar uma volta, matar o tempo. Era mentira. Eu só queria fugir um pouco de casa. Me afastar dela, de mim, de tudo.
No carro, com o rosto encostado na janela e o vento do ar-condicionado gelando a minha bochecha, abri a lista de contatos no celular. Procurava alguém. Qualquer pessoa que eu pudesse chamar, que viesse correndo só pra me fazer companhia, tomar um café, conversar besteira. Mas não tinha ninguém assim. A lista parecia cheia, mas era tudo vazio. Eu não tinha amigas de verdade. Nunca tive. Sempre tive dificuldade pra fazer amizade, e quando tentava, parecia forçado demais. Eu não sabia ser leve. Nunca soube.
Pensei que talvez cairia bem ter um namorado. Alguém pra andar de mãos dadas num domingo à tarde. Alguém pra me abraçar sem pedir nudes depois. Mas todos os que eu tive me chutaram. Me traíram. Me fizeram acreditar que a culpa era minha.
Deslizei o dedo devagar até parar no nome dele. Vitorino. Eu disse para minha irmã que eu não tinha salvo o nome dele, mas eu salvei.
Ele era bonitinho. Tinha um pau bonitinho, até. E parecia realmente interessado. Mas duas pessoas diferentes já tinham me alertado sobre ele. “É problema”, diziam. Mas ninguém explicava por quê. Só soltavam a frase com cara de aviso e achavam que isso bastava.
— Mas que tipo de problema? — murmurei sozinha, em voz baixa, sem querer que o motorista ouvisse. Fiquei ali, encarando o contato dele no telefone, o fundo do carro passando borrado pela janela, e uma vontade estranha de mandar mensagem crescendo dentro do peito. Só pra não me sentir tão sozinha naquela cidade imensa.
E ao invés de mandar mensagem, eu liguei. Sem pensar, sem plano, sem saber o que ia dizer.
— Alô? — soltei, tentando soar firme.
— Oi, pois não. Posso ajudar? — a voz do outro lado era masculina, clara, educada até demais.
— É que… deixaram esse número pra mim, e eu queria saber do que se trata… — eu já odiava a frase assim que saiu da minha boca.
— Qual o seu nome? E com quem você quer falar?
— Esse telefone é do Vitorino? — perguntei, já me sentindo meio idiota.
— Ahn… meu nome é Vitor. Se você tá me chamando por esse nome aí, é porque deve ser da internet.
Ele riu. Um riso pequeno, de canto, mas real.
— Qual o seu nome?
— Justine. Mas pode me chamar de Ju… — respondi, num tom mais baixo, mais íntimo, sem saber por que.
— Ahn! A moça do site! Nossa, nunca achei que você fosse ligar de volta.
O carro estacionou com um tranco leve e o motorista falou alto demais, do tipo que não tem noção de volume.
— Moça, eu vou deixar você aqui, na entrada de trás do Shopping Mall, porque se eu der a volta a gente vai ficar presos num trânsito terrível.
— Tudo bem, moço — respondi educadamente, tentando disfarçar o incômodo.
Mas era tarde. Aquele comentário dele, dito assim, alto, sem querer, jogado no meio da ligação… mudou tudo.
— Justine… perdão. Ju. Você tá no Mall? — a voz do Vitor ficou mais animada, mais próxima. — Nossa, eu moro há dez minutos daí! Quer tomar um chope?
Fiquei nervosa. Travei por um segundo. Um chope?
— Um chope? — repeti, gaguejando. — Mas eu… eu nem te conheço.
— Maaas você me viu na câmera, né? Então você me conhece. Vai, vamos! Sem segundas intenções, eu prometo.
Ele disse aquilo rindo, leve, como quem realmente não queria me assustar. A parte do “sem segundas intenções” me arrancou um sorriso. Me deixou um pouco mais tranquila, confesso. Agradeci o motorista, e saí do carro com o coração batendo mais rápido do que devia. Entrei no shopping quase em piloto automático.
— Na praça de alimentação pode ser? — perguntei, já pensando no lugar mais movimentado do shopping, só por garantia.
— Me arrumo em vinte minutos. Levo mais dez pra chegar aí…
— Meia hora, então. Tudo bem. Quando tiver saindo, me manda uma mensagem.
Desliguei e guardei o celular no bolso com a mão ainda suando. Minha irmã ia me matar se soubesse disso.