Capítulo 23

É estranho como a vida te dá um tranco e, cinco minutos depois, finge normalidade. Saí de um momento ruim e, no banco de trás do Uber, a cidade lavava o vidro com luz e buzina enquanto eu fazia listas na cabeça: o que eu podia comprar, o que eu merecia. Seria burrice recusar. Era muito dinheiro. Só que a realidade adora debochar de mim: esse dinheiro já nasceu com endereço, pagar o hospital do meu pai.

Tentei me trapacear. Separar um tantinho pra mim, um presente qualquer, já que eu nunca me dei nada de verdade. No fim, venceu a fiscal que mora em mim. Responsável. Irritante. Às vezes eu queria ser a Juju por um dia. Se fosse ela, nem avisava que tinha conseguido. Torrava tudo numa noitada, rindo alto, batom borrado, e ainda dormia sem culpa.

“Mas ao menos um milk-shake eu podia pedir, né?”, pensei no banco de trás do Uber, segurando o riso para não chamar atenção do motorista.

Quando cheguei em casa, larguei a bolsa na mesinha da entrada, pendurei as chaves no gancho e vi a Juju sentada no chão da sala, em cam. Levei um susto no reflexo, depois lembrei do que a gente anda fazendo. Ri por dentro: de calcinha, peitos à mostra, chupando um dildo de um jeito exagerado, com aquele olhar ensaiado para a câmera.

Ela notou minha presença, desviou os olhos por um segundo e voltou ao que fazia. Eu ficava impressionada com a desenvoltura dela para isso. Atravessei a sala e fui para a cozinha esperar o intervalo. Eu até podia ficar ali o show dela, mas a verdade é que nenhuma de nós relaxa de verdade com a outra assistindo.

Me servi um copo de água gelada, encostei na pia e peguei meu celular, nunca meu aplicativo de banco mostrou tanto dinheiro de uma única vez, e de forma positiva. Eu não pude me conter em pensar que as vezes eu tinha que seguir mais o conselho da minha irmã e me arriscar mais nas coisas, arrriscar nào, fazer coisas bobagem mesmo. Minha irmã nunca teve um emprego formal, para ser muito honesta eu nunca consegui dizer quando me perguntavam: Com o que sua irmão trabalha? Eu sempre ria e dizia, “Internet!”.

A voz dela chegou antes do corpo, cortando a cozinha.

— Garota, onde é que tu tava? — pegou meu copo da minha mão e virou de uma vez. — Nossa, que sede.

— No shopping… — menti.

— Até duas da manhã? — ela me farejou com os olhos. Sabia que era mentira.

— Fui encontrar uma pessoa, a gente comeu alguma coisa e… você sabe.

Ela cruzou os braços, ainda com o copo, e fez cara de deboche.

— Ah, é? A dona certinha tá de namoradinho? De onde saiu esse aí? — O deboche era nítido.

— Você não conhece. Um cara do trabalho. Não vai dar em nada.

— Transou?

A performance do Vitorino me veio inteira. Minha cara azedou antes da resposta.

— Começou até bem, mas… — Completei com uma cara de desânimo

— Aff. — Ela me respondeu com uma bufada, só quem é mulher entende isso.

Ela ganhou a fofoca que queria e parou por aí, o que me aliviou. Já ia virar as costas quando a segurei.

— E hoje, como foi? — Quis saber, estava curiosa.

Ela parou, fez cara de gênio e respondeu:

— Não tá ruim. Olhei há uma hora. Deve ter dado uns duzentos, agora, talvez uns trezentos e uns quebradinhos.

Ela se encostou no batente, colocou a sola do pé no outro joelho, fez um quatro preguiçoso com as pernas e continuou:

— E a gente precisa gravar. Aquele vídeo ficou ok, mas não tá legal. Tremido, escuro, com cara de vazado de zapzap.

Vi na cara dela o peso do depois. Ela tinha me infernizado para fazer e, quando fizemos, bateu a conta.

— Amanhã depois do trabalho? — Sugeri.

— Amanhã é teu dia de cam. Você só chega depois das dezoito. Vai estar escuro. Isso se não passar no hospital antes.

— Alguém tem que ver as coisas do pai. E eu tenho que ir amanhã pagar lá.

— A gente já tem o dinheiro para pagar uma parte? A tia deu?

— Não, mas eu vou resolver tá? Fica tranquila. — Falei.

Ela não fazia ideia do valor total. Nem quanto custava por dia manter meu pai internado. Muito menos do que aconteceria se a gente não pagasse. Vivia no mundinho dela, pulando fora de qualquer responsabilidade, e tudo acabava nas minhas costas.

No trabalho, meu chefe me liberou meio expediente, mas só essa semana. Tentamos puxar os horários para bem cedo, assim o consultório não precisaria ficar aberto tanto tempo. Eu precisava de tempo. Não tinha. E, embora a cam estivesse rendendo mais dinheiro agora, os benefícios do emprego eram bons demais para largar.

Juliette voltou para o tapete, ajeitou o cabelo, sorriu para a lente. Deu boas-vindas aos novos, leu o chat na tela e respondeu em voz alta, toda performática. Fiquei na cozinha, encostada na pia, só assistindo e rindo do jeito vulgar e engraçado que ela tem quando entra no personagem.

— DP? Adoro. Nunca fiz, mas morro de vontade.

Eu tenho certeza que ela nunca deu a bunda na vida, ela disse uma vez que tinha tentado e a coisa nem passou a cabeça e ela morreu de dor. Estava contando mentiras, fazia parte do show dela.

— Mulher? Claro que gosto. Mas prefiro um pau bem gostoso.

Bem, ela me pegou né, isso conta.

— Sim, tenho irmã gêmea. Dias de semana cada uma no seu dia. Fim de semana a gente faz juntas.

Esse era o combinado, mas a gente aparecia juntas quando dava em dia de semana também.

— Muito parecidas. Até a pepeca. Só que ela é a chata e eu sou a legal.

Sim, fisicamente a gente era muito parecida.

— Atender por fora? Não. E nem pretendemos.

Caramba, ela nem podia imaginar a merda que eu tinha acabado de fazer, mas nem pude pensar tanto nisso, alguém chamou ela para um privado. E a pessoa pagou algo muito específico por que ela tirou a calcinha logo de cara, coisa que só fazia por último e sentou-se no sofá. Eu sabia do que se tratava, o cara deve ter pago uma masturbação.

Ela não fazia ideia da merda que eu tinha aprontado. Nem tive tempo de remoer. Chamaram ela para o privado. A notificação acendeu, ela riu curto, tirou a calcinha de cara — coisa que sempre deixava por último — e se afundou no sofá.

Fiquei na cozinha e vi quando o corpo dela virou o centro da cena. Observar a Juju mexia comigo. Cada risada que ela soltava puxava um arrepio meu. Era esquisito porque parecia me ver ali, ocupando o lugar dela. Quando Juju abriu as coxas e levou dois dedos, senti o calor subir nas minhas, um formigamento que prendeu a respiração no alto do peito. Mordi a parte interna da bochecha pra não fazer som. A cada “ainda não” que ela deu pra câmera, o meu “agora” apertou por dentro.

Quando ela lambeu os próprios dedos, minha garganta secou. Passei a língua nos lábios no reflexo, como se tivesse o gosto dela. O dildo encostou e quem se arqueou fui eu, escondida no batente. O primeiro empurre curto me fez fechar os olhos e contar até três. Não adiantou. A mão livre beliscou minha coxa por baixo do vestido, só pra ver se eu voltava pra mim. Não voltei. Meu corpo seguia o ritmo dela, como se a distância entre sala e cozinha fosse elástica e me puxasse junto.

Senti meu ventre me levar pra frente, a nuca arrepiar, os mamilos endurecerem contra a blusa. Aquilo me fez querer me tocar. A tensão de ficar parada vendo me deixou mais molhada do que qualquer gesto. Era um prazer obediente, nervoso, que crescia no erro.

Veio a primeira onda nela e prendi o fôlego, admirada. O tremor que atravessou o corpo dela atravessou o meu, um estalo do umbigo à garganta. Apoiei as duas mãos no batente e deixei minhas coxas se esfregarem. Ela riu baixinho, cruel, e voltou num jogo de golpes curtos, fazendo o dildo desaparecer e reaparecer. Eu só consegui respirar quando a tela piscou de novo e ela sussurrou “assim”, como se falasse comigo.

A vontade de me tocar doeu.

Minha calcinha colou.

E como um animal, eu corri para o quarto.