Capítulo 28
A noite foi dura. A culpa martelava sem piedade, lembrando que eu sempre me gabei dos meus valores e quebrei quase todos. Justo com a minha irmã gêmea. Numa relação homossexual. E o que me ferra mais: eu gostei. Eu queria mais, fiquei pensando em pretextos para gravar alguma coisa só para ter aquilo de novo, e ontem? Nem câmera ligada tinha, eu nem sei dizer mais como aquilo começou. E, por cima, a prostituição. Só de pensar me embrulha o estômago.
Se a eu do passado esbarrasse nessa história, riria de nervoso e diria que é impossível. Fico repetindo que entrei nisso pelo meu pai, se ele morrer amanhã, eu não quero me lamentar a vida inteira de que não tentei de tudo. Mas na real, já não sei se isso é só um pretexto para dar alguma honra às merdas que eu ando fazendo.
Transar por transar com ela e me vender por dinheiro não era necessário. Não tinha urgência. Não tinha desculpa. Eu escolhi, e é isso que pesa.
Então por que eu fiz isso?
Não sei.
Aconteceu.
Acordei cedo e já cansada da noite mal dormida. Na cama ao lado, Juju dormia tranquila, como se nada tivesse acontecido entre nós. Queria muito tão ser irresponsável como ela. Olhei o relógio e cogitei faltar no trabalho, mas lembrei do plano de saúde e do vale-alimentação. Somados ao salário, ainda seguravam a corda por aqui. Com meu pai sem trabalhar, até sair a papelada a gente não ia ver um centavo do governo, e mesmo quando viesse, não chegaria perto do que ele ganha. Meu pai é a cara da minha irmã: sempre tem seus “por fora”, para não ser desrespeitosa e dizer trambiques.
Um banho gelado e um café forte me deram alguma disposição. Um ônibus lotado e uma cabeça oca depois, eu já estava no consultório. O lugar ainda vazio, antes do expediente, me recebeu com aquele cheiro de lavanda artificial — algum desinfetante que a faxineira devia ter acabado de passar. Joguei a bolsa por cima do balcão e fui direto ao banheiro trocar de roupa.
Quando saí, ele estava lá, encostado na porta do consultório.
— Justine, querida, bom dia. — A voz soava leve, mas o rosto… não. Ele tinha um ar sempre simpático, mas hoje algo estava diferente, e eu não sabia se queria descobrir o motivo. — Vem aqui no meu consultório pra gente conversar um pouquinho?
— Bom dia, doutor. — Forcei um sorriso. — Só vou trocar de roupa e já vou, tá?
Aquela frase soaria inofensiva em qualquer outro dia, mas quando a gente anda fazendo tudo errado na vida, qualquer coisa parece uma sentença. E ele estava com uma expressão que não deixava espaço pra sossego.
“Será que vai me mandar embora? Também, eu tenho faltado e trocado o horário toda hora…”
Entrei no banheiro, vesti o uniforme e respirei fundo antes de sair. Caminhei até o consultório dele e bati de leve na porta. Ele estava escrevendo algo nos prontuários do dia, concentrado, com a caneta riscando rápido o papel. Levantou os olhos, fez sinal para eu sentar e, sem rodeios, perguntou:
— Como está seu pai?
— Doutor… — meu pai não estava nada bem, e eu nunca sabia qual palavra usar. — Ele está estabilizado, mas ainda é cedo pra dizer qualquer coisa.
— E você? Apesar de tudo, como está?
Aquilo abriu um buraco no estômago. Eu segurei.
— Vou indo do jeito que dá…
— Entendi. — Ele me examinou com os olhos, como quem pesa uma peça na mão. — Existe algo a mais que eu possa fazer por você?
Eu não tinha do que reclamar. Em outro lugar já teriam me mandado embora. Ele tolerou meus atrasos, minhas faltas, meus horários tortos.
— Nossa, doutor, eu nem sei como agradecer. Pedir mais seria abuso. As coisas estão se ajeitando… minha irmã vai dividir as tarefas comigo. — Menti sem piscar.
Ele ouviu em silêncio, respirou fundo e então:
— Acho que você precisa espairecer. Que tal sair comigo pra comer alguma coisa?
— Um almoço naquele restaurante novo seria ótimo. — Sorri, aliviada, entendendo aquilo como gentileza de colega.
— Não, Justine. Eu estava mais pensando em um jantar. — Havia segundas intenções ali.
— Jantar? — engoli seco.
— Sim. Eu te busco, a gente come algo e, se você quiser, podemos esticar. Você precisa se distrair.
A palavra “jantar” ficou pairando como um aviso luminoso. Ele nunca tinha dado a menor brecha. Por que agora? Por que justo agora?
— Doutor… eu não quero que o senhor arrume problema com a sua esposa. — Tentei uma saída lateral, macia, sem confronto.
— Não se preocupe com ela. — O tom dele continuava calmo, mas a intenção era clara. — Tenho certeza de que você vai gostar de passar um tempo comigo.
Senti o rosto queimar. Levantei meio desajeitada, tropeçando nas palavras.
— Eu… eu vou ver como vai ser essa semana com a minha irmã, daí eu falo com o senhor e a gente combina, tá bem?
— Combinado. E olha, não aceito recusa, hein. — Ele sorriu, meio forçado, meio sério.
Saí da sala sem entender nada. O homem nunca tinha olhado pra mim de outro jeito. No máximo dizia que eu estava bonita, o mesmo elogio que fazia a todas. Sempre foi respeitoso, correto, distante. E agora aquilo — justo agora, com meu pai no CTI. Ele não era insensível. Ou eu achava que não era.
Enquanto caminhava pelo corredor, a cabeça latejava. A imagem dele, da mesa, da voz muda entre uma frase e outra, não saía da mente. Alguma coisa tinha mudado, mas eu não sabia se era ele… ou eu.
Eu quis ligar pra minha irmã e contar o que tinha acabado de acontecer, mas sabia que ela não estaria acordada antes do meio-dia. As meninas do consultório, então, nem pensar — bastava um comentário atravessado pra história rodar o prédio e cair no ouvido do doutor. Melhor engolir e esperar o fim do dia.
Sentei atrás do balcão, ajeitei o computador, tentei parecer normal. Liguei o sistema, abri os programas, conferi a agenda. O primeiro paciente chegou rápido. Fiz a ficha, chamei o doutor e logo fiquei sozinha na antessala.
Cinco novos e-mails. Propagandas, confirmações, pedidos de retorno. E um. Um que não tinha destinatário certo, só uma frase seca no corpo da mensagem:
“O seu show é diário?”
O estômago virou. Bloqueei o remetente e deletei o e-mail no mesmo segundo, mas a mão tremia no mouse. A garganta travou. Fiquei olhando para a tela apagada, sentindo o sangue correr frio.
Haviam me descoberto.
Parei na mesma hora. Nem duas semanas e já tinham me achado no meu trabalho. Se descobrissem, eu virava piada de corredor. Fechei os olhos, respirei fundo e encarei a sala vazia, como se alguma cadeira fosse me dizer o que fazer.
— E se eu contasse a verdade pro doutor? — sussurrei.
Descartei a ideia no mesmo segundo. Ele não ia querer “prostituta” na recepção. Se a história vazasse, perderia paciente, reputação, tudo. Ele não podia saber.
Aí veio o estalo: um e-mail perguntando de “show” e, no mesmo dia, ele me convida pra jantar? Parecia coincidência burra. O celular pessoal dele ficava comigo durante os atendimentos. Fiz o que não devia. Olhei pros lados, destravei o aparelho e fucei. Grupos de WhatsApp, mensagens, e-mails pessoais. Nada sobre mim. Só a esposa, com uma mensagem curta e venenosa, se referindo a mim como “a preguiçosa que usa o pai morrendo de desculpa”. Aquilo me irritou
Bloqueei a tela quando ouvi a cadeira do consultório arrastar. Silêncio. O ar condicionado sibilava. Minhas mãos ainda tremiam sobre o teclado.
Chegou outro e-mail.
Meu coração palpitou, fiquei nervosa abri achando que era mais um email daquele, mas para meu alívio não era.
O telefone da recepção tocou. Atendi no automático, voz treinada:
— Consultório, bom dia.
— Bom dia… — a voz masculina sorriu do outro lado — queria agendar uma limpeza. Ah, e… azul fica melhor em você.
A ligação caiu.
Fiquei olhando pro nada, com o fone ainda no ouvido. O corredor respirava comigo. Atrás da porta, ouvi o doutor se despedindo do paciente. Eu precisava parecer normal em trinta segundos.
Minimizei a caixa de e-mail, abri a agenda, fingi revisar horários. Quando ele saiu do consultório, me encontrou reta, postura de manual. Ele passou devagar, sentiu alguma coisa no ar, mas não perguntou. Entrou na sala de esterilização.
Peguei meu celular escondido atrás do monitor e digitei pra minha irmã: “Alguém do meu trabalho me achou. Pode ver se dá pra esconder mais o perfil por região? “Precisamos falar. Urgente.” Enviei.
Veio paciente. Fiz ficha, sorri com os olhos, confirmei procedimento. Modo robô. O corpo trabalhava. A cabeça, não. Cada segundo parecia um copo d’água cheio até a borda.
O doutor reapareceu na recepção.
— Tudo certo aí, Justine?
— Tudo certo. — minha voz saiu limpa, treinada.
Ele me mediu por meio segundo, assentiu e voltou. Quando a porta fechou, o meu celular vibrou. Resposta da minha irmã: “Do que você tá falando maluca, eu estou dormindo, quando eu acordar a gente conversa.”
Abri a agenda do dia, arrastei compromissos, tentando ganhar uns minutos para sair mais cedo .
O telefone tocou de novo. Atendi.
— Consultório, bom dia.
Silêncio curto. Depois, a mesma voz, agora sem sorriso:
— Vermelha, então.

