Capítulo 29

Passei o expediente inteiro com o estômago revirado. As mensagens pararam depois daquela última, mas o medo não. Salvei o número, fiquei encarando a tela tentando imaginar um jeito de descobrir quem era sem precisar ligar de volta. Quem quer se esconder não liga da própria casa.

Quando cheguei em casa, desabei no sofá e contei tudo pra Juju. Ela ouviu em silêncio, mexendo no celular, e só respondeu com aquele jeito frio de quem não se abala com nada:

— Você sabia que isso ia acontecer um dia. Então larga essa porcaria de trabalho e foca no nosso job. Lá você ganha mais e ainda se livra dessa fachada.

Suspirei fundo. Cansei de explicar os motivos. O emprego era mais que o salário. Era o disfarce. O plano de saúde, o vale, a rotina… e, principalmente, o álibi. Se eu largasse, iam perguntar. De onde vem o dinheiro? Como você se sustenta? Meu pai, minha irmã, todo mundo ia estranhar. Trabalhar ali ainda me dava uma sombra de normalidade. Um motivo aceitável pra continuar respirando sem precisar mentir o tempo todo.

Juju não entendia isso. Ou fingia que não entendia. Pra ela, tudo era simples: só sair e continuar ganhando. Pra mim, era o peso de parecer uma pessoa decente.

Juju, a contragosto, foi ficar com o meu pai, e eu segui pro salão. Fiz as unhas, cortei as pontas, acertei as sobrancelhas e o buço — o ritual de sempre, automático. Era meu dia de cam, e Juju entraria comigo por um tempo, pra anunciar que amanhã seria nós duas juntas. Eu achei uma burrada: ninguém ia gastar comigo hoje se podia guardar o dinheiro pra ver duas pelo preço de uma. Mas Juju insistiu, e quando ela quer, é inútil discutir.

Voltei pra casa e fui direto pro banho. A água quente escorrendo pelo corpo ajudou a soltar a tensão, mas a cabeça continuava presa no mesmo ponto: o stalker. Quem seria?

O Vitorino? Improvável. Ele tem meu número, se quisesse algo, já teria ligado. E também não faz o tipo.
O doutor? Não parecia. Ele pode ter cruzado alguma linha hoje, mas não era burro. Se soubesse da minha outra vida, teria me demitido na hora, e não me chamado pra jantar.

Quem, então? Nenhum nome fechava. Nenhum rosto combinava com aquela voz ao telefone.

E o pior é que, quanto mais eu tentava esquecer, mais eu sentia que alguém, em algum lugar, ainda estava me olhando.

Eu precisava aceitar que tinham me descoberto e montar um plano pro dia em que tudo viesse à tona. Mas isso ficaria para depois. O show ia começar e a meta era clara: quinhentos reais. Era mais que o dobro do que a gente fazia nos dias úteis, quando mal passava de duzentos e poucos. Era o valor que combinamos para valer a pena fazer em dupla. Juju disse que impulsionou dentro da plataforma para aumentar a visibilidade e puxar mais gente.

Usei uma parte do dinheiro do Vitorino para comprar luzes e uma câmera melhor. Juju cuidou das compras. O kit foi uma pequena fortuna e ela nem perguntou de onde veio o dinheiro, como se aquela quantia fosse normal pra nós. Fiz as contas com a cabeça encostada no armário: o que eu tinha em mãos não resolvia minha vida, mas investir em imagem, figurino, brinquedos e áudio podia alavancar rápido. Preço da brincadeira? Quase três salários mínimos.

Vesti o robe, testei a iluminação. Azul, depois vermelha. A pele respondia diferente em cada cor. Ajustei a câmera, chequei o foco, o retorno, o delay do chat. Silenciei notificações do celular. Um copo d’água ao lado, batom na bancada, playlist baixa só para preencher o ar. Ainda pensava no stalker, no e-mail sem assinatura, na voz que disse “vermelha então”. O estômago virou, mas as mãos seguiram firmes. Trabalho é trabalho. Hoje eu não podia falhar.

Abri o preview e vi a sala enquadrada do jeito certo: fundo limpo, luz desenhando o ombro, uma sombra discreta nas clavículas. A meta piscava na cabeça como relógio. Respirei fundo. Contagem regressiva da plataforma, cinco, quatro, três. Pensei no plano de saúde, no vale, no meu pai, no custo das luzes. Pensei também no que teria que fazer se alguém, ali dentro, me chamasse pelo nome verdadeiro.

Dois. Um.

Sorri para a lente.

Eu cumprimentei o chat no ritmo da batida que Juju tinha deixado na playlist. A música empurrava meu corpo de leve, como uma mão nas costas dizendo “vai”. Ao lado, a garrafa de gim. Gelo estalando no copo. Uma banda fina de limão. Eu não sabia se esse era o jeito certo de beber, só sabia que, daquele jeito, a coragem descia fácil.

O primeiro gole aqueceu a garganta e abriu um corredor dentro de mim. Fiquei ali, os olhos correndo pela enxurrada de mensagens, respondendo de modo leve, brincando com os nicks, deixando a música ocupar os silêncios entre uma resposta e outra. O chat vibrava. Elogios diretos, fetiches sendo jogados sem ninguém perguntar, promessas de gorjeta se eu piscasse do jeito certo. Eu lia e sentia o corpo reagir. Não a eles, exatamente, mas ao fato de ser desejada. Era como se cada frase acendesse um ponto novo na pele, um mapa de calor que subia dos punhos aos ombros, e dos ombros para o peito, até onde o sutiã mal segurava o compasso da respiração.

Mais um gole. Eu ri de um comentário tosco, cortei outro que passou do ponto, provoquei um terceiro que parecia tímido. Percebi que eu gostava do poder de ajustar o tom da sala com duas ou três palavras. Era um interruptor: mais doce, eles vinham; mais dura, eles insistiam. A batida caiu, grave, e eu deixei o quadril acompanhar, um balanço quase imperceptível atrás da mesa. Senti o tecido fino da blusa esfregar nos mamilos e foi automático: mordi o lábio, como se o gesto prendesse um gemido que eu nem tinha dado. A câmera não perdoa pequenos prazeres.

“Mostra o peitinho tia?”, escreveu um, todo afoito. “Mostra só um pouquinho?”, pediu outro, quase gentil. Eu olhei para a lente e pensei em negar. Pensei. Em vez disso, resolvi brincar: ergui a barra da blusa apenas o suficiente para fazer um peekaboo rápido, um flash de pele que não dava tempo de virar nude e, mesmo assim, explodiu a sala. O som de notificações veio como chuva em telhado de zinco. Eu ri com a boca fechada, como se guardasse aquilo dentro de mim.

A coragem cresceu mais que o gim. Apoiei a ponta dos dedos na base do pescoço e desci devagar, marcando caminho pelo esterno, até encontrar o decote. A outra mão entrou por baixo do tecido e prendeu um mamilo entre a polpa do indicador e do polegar. Um arrepio claro, elétrico. A câmera pegou o suspiro que me escapou — curto, sincero. Eu sabia como tocar meu próprio corpo. Conhecia a pressão certa que virava a chave de frio para morno, de morno para quente. Belisquei de leve, soltei, circulei com a unha, senti a pele contrair, o bico enrijecer. Do chat vieram palavrinhas quebradas, sem pontuação, como se ninguém tivesse tempo de escrever direito enquanto me olhava.

Inclinei o tronco mais perto da câmera. A luz recortou minha clavícula, desenhou sombra entre os seios. Passei o dorso da mão por cima do tecido só para sentir o atrito, e a fricção acendeu outro ponto lá embaixo. O mundo ficou estreito: música, minha respiração, a tela piscando. Senti a umidade aumentando na calcinha, quente, pegajosa de um jeito bom. Não era mentira de performance. Era meu corpo respondendo ao tablado que eu mesma montei.

— Assim tá bom? — perguntei, a voz um pouco mais baixa, já rouca nas bordas.

“Não para”, “continua”, “me mata devagar”, li em sequência. Obedeci a quem pediu calma. Segurei um seio por baixo, pesei na mão, subi juntando a pele como quem oferece fruta. Com a outra, belisquei o outro mamilo, dei um tapinha suave, só o suficiente para fazê-lo latejar. O latejo desceu em linha até o umbigo e sumiu entre as pernas. Cruzei as coxas por reflexo, buscando um atrito que não resolvesse nada, apenas prometesse.

A cada toque meu, o chat crescia. Eu não precisava inventar falas. Bastava olhar para a lente como se houvesse uma pessoa só do outro lado. Imaginei essa pessoa encostada na cadeira, respirando no meu tempo, esperando a próxima decisão da minha mão. Era ridículo e, ao mesmo tempo, excitante. O controle mora onde a imaginação obedece.