Capítulo 17

Voltei pra casa correndo. Entrei, dei boa noite pros meus pais como se nada tivesse acontecido. Minha mãe, claro, farejou o ar. Ela sempre farejava. Me olhou de cima a baixo, demorando um segundo a mais do que devia. Eu senti. Ela sabia. Sempre sabia quando eu tinha feito merda. Inferno de radar materno. Mas, dessa vez, ela preferiu ficar quieta. Só me acompanhou com os olhos até eu sumir no corredor.

No quarto, comecei a fuçar as gavetas. Eu precisava de roupa limpa. Principalmente de calcinha. Urgente. Só a ideia de deitar com aquela molhada já me dava agonia. Fui até o espelho e, aí sim, entendi o que minha mãe tinha visto. Um sorriso idiota, pregado no meu rosto. Eu podia até tentar disfarçar, mas não tinha como. Era sorriso de menina que aprontou. De menina que tinha dado.

“De menina fudequeira!”

No dia seguinte, sábado, eu já tinha trocado umas mensagens com o Glauco dizendo que ia tentar dar um pulo na casa dele. Nem que fosse só passar rápido. Mas eu precisava primeiro de um milagre: convencer minha mãe a me deixar sair. Não podia simplesmente falar que ia passar quatro horas andando no condomínio. Eu não tinha esse hábito, ela ia sacar na hora. E se eu dissesse que ia pro shopping, pronto: minha mãe ia querer ir comigo.

Pensei em ligar pra Amanda, pedir cobertura. Mas, pô, a Amanda era minha “amiga pra coisas erradas” recém-inaugurada… e eu meio que tinha ficado com ela. Seria sacanagem usar a coitada como desculpa pra encontrar outro cara. “Muita vacilação, né véi!”

As meninas do colégio também não eram opção, porque a gente quase nunca saía juntas. Se eu inventasse que ia pra casa de alguma delas e minha mãe resolvesse ligar pra confirmar, eu tava fodida. Pior ainda: nossas mães todas eram amiguinhas de grupo de WhatsApp.

Sobrou uma alternativa: minha irmã. O problema é que ela sempre fazia interrogatório.

Saí do meu quarto e fui até o dela. Estava jogada na cama, ainda dormindo, um fiapo de gente no meio do edredom. Me enfiei debaixo da coberta do lado dela, cutucando.

— Irmã… acorda.

— Caralho, Kika, me deixa dormir — resmungou, enterrando o rosto no travesseiro. — Te odeio. Bom dia.

— Bom diaaaa! — respondi cantarolando, dando um beijo estalado na bochecha dela.

Com raiva no coração, mas amor de irmã, ela me agarrou e me espremia como se quisesse me sufocar.

— Que foi, inferno de garota?

— Ai! Você tá com bafo, garota! Boca de boeiro. Chupou quantos paus ontem?

— Infelizmente só um… um bem grandão e gostoso. — ela riu e ainda mostrou o tamanho com as mãos, exagerando.

Sem pensar, escorregou da minha boca:

— Não é desse tamanho.

— O quê, garota? — ela arregalou os olhos, me encarando.

— O quê o quê? — perguntei. Eu nem tinha percebido que tinha falado alto.

— Eu falei do tamanho do pau e você disse que não é desse tamanho… — ela arqueou a sobrancelha, sacando que tinha coisa ali.

— TDAAAAAAAH!!! — respondi de bate-pronto. — Tenho laudo médico, eu falo as coisas sem querer, esquece, eu sou maluca.

Ela riu, mas não tirou os olhos de mim.

— Sei… sei… fala logo, o que você quer?

Eu me ajeitei na cama, disputando a coberta e puxando até o meu queixo sob protestos. Tava quentinho ali, e por um segundo até pensei em desistir do meu plano e tirar um cochilo. Mas não dava, eu tinha que pedir logo.

— Eu vou sair com um menino aqui do condomínio, mas eu não quero falar com a mãe.

— Quem é esse? — ela perguntou ainda com a voz amassada de sono.

— Você não conhece, ele é novo aqui no prédio.

— E você vai pra onde com ele?

— Vou ficar no condomínio mesmo, é aqui no prédio. Eu não vou passar da portaria.

Ela respirou fundo, limpou as remelas, bocejou, e me olhou com cara de quem já sabia a resposta.
— Erika, Erika… você disse que ele é novo aqui… e já vai dar pra ele?

— Eu não falei que eu vou dar pra ele! Você que tá dizendo… — respondi rápido, com a voz fina de defesa.

— Claro que vai! — ela riu, apertando forte a minha bunda. — Eu não sou idiota, Kika!

— Digamos que talvez haja a possibilidade de eu dar.

— Vai perder a virgindade com ele?

Na hora eu enfiei a cara no travesseiro, abafando a voz pra não ser traída pela minha própria maluquice. Eu não podia, de jeito nenhum, dizer que o primeiro tinha sido o namorado dela.

— Já perdi. — falei rápido, escondendo a cara.

— Sério? Quando isso? — ela já estava mais desperta, arregalando os olhos.

— Ontem. — saiu abafado, quase um sussurro.

— Kika! — ela se levantou meio de lado na cama, incrédula. — Tu usou camisinha?

— Uhum… — respondi sem levantar a cabeça.

Ela riu, surpresa, sem acreditar.

— Você é muito piranha, garota!

— Para… — resmunguei, ainda afundada no travesseiro.

— Quantos anos ele tem?

Aí fudeu. Se eu falasse que tinha a idade dela, ou mais, ela ia me matar.

— Não sei… para de fazer pergunta.

— Quando você conheceu ele?

— Ontem? — tentei responder, mas saiu estranho, como se fosse pergunta e afirmação ao mesmo tempo.

Ela arregalou os olhos, incrédula.

— Espera… você conheceu o garoto e deu pra ele assim… do nada?

— Mais ou menos… a coisa esquentou e foi.

Minha irmã me olhava com a boca aberta, sem acreditar. O rosto dela misturava choque, surpresa e uma ponta de preocupação.

— Kika, não pode ser assim, amor… — balançou a cabeça, colocando a mão na testa. — Eu… eu não tenho palavras.

— Vai me ajudar ou não? — perguntei, já meio impaciente.

Ela parou. Pensou. O semblante mudou um pouco.

— Erika… você tem que conversar com a mamãe sobre isso, tá bem? Você tem que ir na ginecologista e fazer as coisas direitinhas. Ouviu bem?

— Eu vou falar, juro. Mas me ajuda, por favor. — falei séria… mas aí o riso explodiu na minha cara. — Eu quero dar gostosinho hoje!

Antes que ela respondesse, virei de quatro na cama e comecei a rebolar, dramatizando como se tivesse uma pica enfiada no meu rabo. Fazia caras e bocas, gemendo exagerado, quase teatral.

— Ahhh, meu Deus, como eu preciso! — falei fingindo desespero, rebolando sem parar.

Minha irmã arregalou os olhos, depois caiu na gargalhada, batendo travesseiro em mim.

— Você não presta, garota! — gritava, rindo e tentando me acertar. — Ô MÃÃEEE OLHA A PIRANHA DA KIKA AQUI ME PERTUBANDO!

E eu, de propósito, rebolava mais ainda, só pra provocar. E não demorou depois do que a Catarina berrou para a minha mãe aparecer para brigar com a gente, ela abriu a porta do quarto meio rindo e meio séria.

— Olha como você fala da sua irmã Catarina! — minha mãe me olhou de quatro empinada na cama — O que é isso Erika?

— Eu tô mostrando pra Cat como se transa, mãe! — soltei de sacanagem, rindo.

Minha mãe respirou fundo, fechou os olhos um segundo, tentando não rir.

— Sim… certamente a senhora é a melhor pessoa pra ensinar isso a ela.

Catarina, sempre ágil nas ideias, aproveitou a deixa, se sentou na cama e largou:

— Mãe, vou sair de tarde, vou pro Jonas, e vou levar a Kika. Eu tenho que estudar e ela vai ficar jogando DoTA com o Jonas.

— É LoL, sua burra! — corrigi na hora.

— Tudo jogo de retardado… — ela retrucou sem nem pensar.

— Catarinaaa! — a voz da minha mãe veio seca, cortando o ar. — Você sabe que eu não gosto dessa brincadeira aqui em casa.

Minha mãe ficava possessa quando alguém me chamava de demente, retardada, mongoloide… sério, virava um bicho. Podia ser brincadeira, apelido, qualquer coisa. Ela não deixava passar.

E eu, de dentro da coberta, falei:

Eu já falei, né? Eu tenho TDAH, e tô no espectro. Pra quem não me conhece, eu pareço normal. Só que as pessoas me veem como a garota desconcentrada que fala pelos cotovelos e tem umas ideias meio excêntricas, digamos assim.

Falei isso rindo, sem drama, sem culpa. Era o jeito que eu era, e se não fosse isso, jamais teria feito a pergunta que saiu logo em seguida:

— Mãe, se eu quiser dar… tipo hoje, pra um menino… a senhora deixa?

Cat arregalou os olhos como se eu tivesse acabado de invocar o demônio no meio do quarto. Minha mãe engasgou, perdeu o ar, quase tropeçou mesmo parada.

— Dar o quê, Kika?

— Ah mãe, transar. — falei como quem pergunta se pode ir ao cinema.

Sabe no verão quando o dia tá lindo, quente e azul, aí você repara no horizonte as nuvens chegando, os passarinhos voando desesperados, ventos que ficam forte, a temperatura mudando e de repente vem aquela tempestade que engole o céu inteiro e você acha que vai alagar sua casa?

Então. Essa foi a expressão da minha mãe.

— Você não vai dar nada pra ninguém, tá me ouvindo? Não quero ser avó e criar neto de filha adolescente, não!

— Tá, mãe, e se eu usar camisinha e tomar remédio? — insisti, inocente.

— Kika, vai ver se eu tô na esquina! — e saiu andando, nervosa. Não sei se foi pra não se aborrecer mais ou só pra fugir da conversa mesmo.

— Ooooo mãeeeeee!!!! — gritei, mas ela já tava indo embora.

Assim que a porta fechou, Cat desabou na gargalhada.

— Ô sua maluca, esqueceu o remédio hoje, foi?

— Ué, tô preparando o terreno… — falei, como se fosse lógica pura.

— Preparando o terreno desse jeito, Kika? — ela começou a me socar de leve na cabeça. — Ela vai te prender mais ainda, sua burra! Você é burra, muito burra, burra, burra, burra!

— Aiiii, paraaaa! — eu ria, tentando me proteger dos socos, mas no fundo já sabia: tinha feito merda de novo.

— Tu sabe o que vai acontecer hoje à noite, né? — Cat falou, séria de repente.

— O quê? — perguntei, já desconfiada.

— Ela vai falar com o pai. Vai dizer: “A Kika tá pensando em sexo.” O pai vai ficar mais ciumento ainda, vão te vigiar dobrado. E você vai ser levada ao ginecologista à força.

— Mas eu já vou no ginecologista de qualquer jeito. — retruquei. — Tenho que ir, vou duas vezes ao ano.

— É… mas dessa vez ela vai entrar junto e contar pra ginecologista que você quer dar.

— Eu não deixo minha mãe entrar comigo mais, não, garota. Eu não sou criança.

Ela me olhou de um jeito diferente, como se aquilo fosse informação nova. O rosto dela mudou, ficou sério de verdade.

— Olha, eu não vou te segurar e não vou dizer pra você não fazer. Mas você precisa se proteger. E não é só de filho e doença, não.

Eu fiquei quieta, ouvindo.

— Tem a sua reputação, tem o seu coração. Às vezes, Kika, ficar sofrendo por amor ou ser apontada na rua de puta é pior que pegar uma DST, sabia? Doença você trata, esconde. Mas isso… isso pode acabar com a sua vida.

Fiquei em silêncio, engolindo seco. Pela primeira vez, a zoeira tinha virado sermão sério. Mas minha cabeça… quando eu não curtia o assunto, voava longe.

Enquanto ela falava de reputação, coração e doenças, eu reparei no drapeado da cortina: tinha uma dobra solta, porque o acabamento do carrilhão do varão tinha quebrado. Vi também que os livros da faculdade dela não estavam todos ali — devia ter emprestado alguns. E o ar-condicionado piscava no controle: vinte e três graus.

— Por que você coloca o ar-condicionado no vinte e três? Tá certo isso? — soltei, do nada.

— Kika, você ouviu o que eu falei? — ela me encarou, sem acreditar.

— Sim! — respondi rápido. — É que tá mais frio que vinte e três graus.

Ela soltou um sorriso seco, balançou a cabeça como quem diz “não tem jeito mesmo”. E me puxou num abraço apertado. Beijou minha testa e me segurou firme.

Eu não fazia ideia do que aquele abraço significava, mas eu gostava. Muito.