Capítulo 23
Na semana seguinte tudo virou correria por causa de uma obra que apareceu do nada. Passei a semana atolada em faxina pesada, todo santo dia, e isso roubou meu tempo de pensar besteira. Ainda assim, a coisa não saía da cabeça. Como eu poderia propor algo real para os dois? Alfredo tinha me convidado pra transar, mas… e o João?
Ficar imaginando João e Alfredo me revirou por dentro de um jeito indecente. A fantasia escorria da cabeça e descia pelas coxas sem pedir licença. Eles são amigos; eu soube que se encontraram essa semana, mas João não tocou no assunto. Achei que ele tinha perdido o interesse no assunto e isso me jogou um balde de água fria na ideia, não que eu estivesse certa do que queria, mas a possibilidade mexia comigo.
No sábado de manhã, acordei com uma mensagem do Alfredo pedindo pra eu ligar de volta. Confesso: eu já estava, infelizmente, deixando essa história pra trás. E eu liguei.
— Alfredo, oi. É a Vê. Vi tua mensagem.
Enquanto falava, larguei a mesa do café e fui pro quarto atrás de silêncio.
— Oi. Então… quero montar um look pra uma coisa que tô pensando, e será que você me ajuda? Eu sou péssimo com maquiagem.
Inusitado. Mas tudo bem. Eu me garanto na maquiagem, seguia meio mundo de blogueiras no Instagram. Só tinha um porém.
— Tenho que ver. Hoje é sábado e eu mal vi o João a semana inteira…
Sentei na beirada da cama, desolada. Eu queria ir.
— Tá. Fala com ele. Se ele não se importar de eu te “alugar” um pouco…
Levantei e fui vasculhar o armário de maquiagem. Sempre fui do básico: nada espalhafatoso, só cores que conversam comigo e valorizam meu rosto. Vontade de fazer um olho fatal eu tenho há tempos, mas me faltava coragem de sair assim na rua. E eu uso óculos. Detesto lente. É estranho se montar toda e enfiar o óculos por cima, eles muitas vezes nem combinam com o look.
Quase perdi a noção do tempo olhando minhas coisas. Olhei o relógio. Ainda era cedo pra ligar pro João, eu sabia que ia tirar ele da cama. Ri sozinha. Sem pena.
Liguei.
Na terceira chamada, ele atendeu.
Silêncio.
— João?
— Huumf… — só um grunhido. Provavelmente ainda dormindo.
— Bom diaaa, meu amooor! — sonhou comigo?
— Porra, Vê… tá cedo! — A voz dele estava embargada, eu ouvia ele se espreguiçando do outro lado da linha.
— Acoooorda! Já são dez da manhã. — dei um tempo pra ele processar, acordar de vez. — O que a gente vai fazer hoje?
— Dormir. E dormir muito, de preferência sem um ligar pro outro?
Ri da malcriação dele.
— Olha, o Alfredo me mandou mensagem. Quer que eu vá lá ajudar ele a se montar. Meio que um teste de roupa, maquiagem… — fiz uma pausa pro cérebro dele alcançar — essas coisas de cosplay que ele faz. Ele perguntou se eu posso dar uma mão.
— Se você quer ir, vai… — veio seco, mais indiferente do que eu gostaria. — Que horas?
— A gente não fechou hora. Mas ele falou que você pode ir também.
Do outro lado, um bocejo longo.
— Vê, o que eu vou fazer lá? Eu não sei nada de maquiagem.
O João não é burro. E não era lerdeza do sono. Ele queria a mesma resposta que eu: depois daquelas conversas, isso não seria pretexto pra outra coisa? Todo mundo talvez parado no mesmo impasse, achando que o outro tinha “deixado de lado” aquilo tudo.
Confesso: a ideia de ir lá me atiçou de novo. Só que eu tinha que alinhar tudo com o João antes, e eu nem sabia por onde começar. Fiquei nervosa, puxei assunto aleatório, e do outro lado ouvi ele tocando a vida: beber água, escovar os dentes, até o xixi eu tive que aturar. Ele, monossilábico.
Quando a conversa fiada secou, ele foi direto:
— Vê, você quer ir sozinha ou quer que eu vá?
— Eu quero que você vá, oras! — saiu como reação de namorada.
Ele respirou e insistiu:
— Depois daquilo tudo que rolou, você quer um momento com ele a sós?
Eu entendi sem rodeio: ele me perguntou, sem afeto no tom, se eu queria transar com o Alfredo. Me defendi no reflexo, sem saber por quê.
— João, você acha que isso é desculpa pra te descartar e eu ir lá dar pra ele? — falei meio ofendida, sabendo no fundo que não era isso.
— A gente já conversou sobre isso.
Ele disse e calou. A gente tinha conversado muita coisa, e agora eu nem sabia qual resposta servia pra esta cena. Fiquei confusa e devolvi:
— Você quer ir comigo ou não?
— Ele chamou você. Você acha que tem segundas intenções?
O João, como sempre, paranoico, calculando o tabuleiro.
— Não posso afirmar. Mas olha… a gente tem que continuar falando com ele, né? Você acha que a gente deveria parar de se falar depois daquilo? — pausei, sem mais o que acrescentar. Vida que segue.
— Você tem um ponto.
Silêncio longo. Eu conheço esse silêncio: ele pensando, encaixando peças. Até que decidiu:
— Vê, vai na frente. Se estiver tranquilo, me liga.
Tentei acompanhar o raciocínio, mas minha bateria pediu arrego. O resto ficaria pra depois.
Joguei o básico numa mochila: coisas pra cabelo, umas makes boas, e até umas roupinhas. Eu nem sabia exatamente o que ele queria, mas já imaginei que eu também ia querer testar algo em mim. Minha mãe me viu preparando a bolsa e nem perguntou pra onde eu ia. Ficou tranquila, feliz de me ver empolgada com “coisas de menina”, como ela diz.
Depois do almoço, segui pra casa dele. Avisei o João por mensagem que eu tava indo. Ele respondeu do jeito irritante dele: um joinha.
Quando cheguei, o Alfredo, como eu já suspeitava, estava sozinho. A avó tinha ido passar o fim de semana na casa de uma tia. Ele me abriu a porta de short de lycra, justo, desses que eu usava por baixo pra ir à academia — quando eu ia. Por cima, uma blusa longa que parecia peça de pijama feminino. Sei porque? A estampa gigante da Minnie não deixa dúvida. No cabelo, um diadema segurando a franja pra trás; o rosto, branco, já com a pele preparada. Já tinha começado sem mim.
— E aí, pronta pra ficar gata?
A intimidade saiu da minha boca sem aviso. Deu certo. Ele respondeu com o tom afetado que eu já conhecia.
— Amor, eu nasci lindo.
Me deu dois beijinhos, pegou a minha bolsa e me puxou pra dentro. — Quer uma cerveja?
— Não é má pedida. Aceito.
— E o João, ele não vem? — o desamparo na voz dele foi real. Eu senti a maldade no ar.
— Ele vem mais tarde. Mandou a gente começar sem ele. Quis deixar a gente mais à vontade.
Ele ficou olhando pro nada, do jeito que o João faz. Processou a resposta. Sorriu.
— Vem cá, eu te mostro o que tenho na cabeça e você diz se dá pra fazer.
Com a cerveja na mão fomos pro quarto. A música estava alta demais até para conversar. As paredes cheias de fotos de anime e cosplayers gringos. A maioria era impossível de reproduzir. Falta de técnica ou de material.
A conversa virou debate. Eu terminava a base da pele enquanto ele falava suas ideias. Falou de muita coisa. Mas no fim, foi ele quem puxou o assunto sério.
— Vê, tem uma coisa presa na minha garganta. A gente precisa falar disso.
Olhei pelo espelho. Ele sentado na penteadeira linda, cerveja com canudinho pra não borrar. Sua expressão dizia que o assunto não seria brincadeira.
— Fala.
— Depois daquilo, tá tudo bem entre a gente?
— Tá. Deixa isso pra lá. Tá tudo certo. — Eu fiquei vermelha de vergonha.
— E o João, tá de boa?
— Tá sim. Ele vem mais tarde. Se a gente tive algum problema, nenhum dos dois estaria aqui, né? — Tentei jogar para o outro lado para encerrar o constrangimento.
Quis tranquilizar. Me faltou coragem. Por dentro só queria pegar ele. Coragem? Nenhuma.
O rosto dele já estava pronto. Pele preparada: primer pra segurar a oleosidade, corretivo só onde precisava, base de cobertura média no tom dele e acabamento semi-matte. Selado com pó translúcido só na zona T pra não pesar, bruma pra assentar tudo. Contorno cremoso leve nas laterais, blush pêssego de base, sobrancelhas penteadas com gel incolor. Cílios só curvados, sem máscara ainda. Lábios com balm. Ou seja, a tela pronta pra receber o resto da maquiagem.
— Vê, como eu não sei direito que roupa eu vou usar, acho melhor a gente pausa a make aqui. Eu visto a roupa, e a gente finaliza a maquiagem, pode ser?
— Tudo. — Concordei. Entre minhas amigas, isso sempre foi comum.

